Espaço e vigilância: reflexões a partir da geografia nova

#103

Lucas Melgaço

Milton Santos foi sem dúvida o mais importante geógrafo da história brasileira. Suas teorias revolucionaram a forma de se fazer geografia e de se pensar o espaço geográfico. Dentre os inúmeros textos do autor, merece destaque o livro Por uma Geografia Nova (Santos, 1978), cujo título foi uma provocação à geografia quantitativa e computadorizada, e de forte influência norte-americana, que à época foi apresentada como sendo a New Geography. Publicado a mais de 30 anos, o livro faz um resgate do que existia até então em termos de escolas geográficas e propõe algo novo, uma proposta diferente de uma geografia renovada. Esse texto, e aquela década em geral, marcaram o início de um período de renovação da geografia brasileira, mudança espacialmente em relação ao seu método.
Até sua morte em 2001, Milton Santos trabalhou na concepção de uma série de conceitos capazes de lidar com o espaço como totalidade e como complexidade. Dentre as suas diversas proposições estão: que o objeto de estudo da geografia é o espaço geográfico, definido pelo autor como “um conjunto indissociável de objetos e ações” (Santos, 1996); o espaço geográfico pode ser visto como sinônimo de território usado (Santos et al., 2001), conceito este que chama a atenção para o caráter complexo do espaço; o lugar é o espaço do acontecer solidário, e é no lugar que se dão as contrarracionalidades (Santos, 1996); o espaço geográfico pode ser interpretado através de pares dialéticos como psicoesfera e tecnoesfera, ou fixos e fluxos (ibidem); a geografia é a filosofia das técnicas (idem, 2002); o espaço geográfico pode ser periodizado a partir dos diferentes meios técnicos, sendo hoje o meio técnico-científico e informacional o meio dominante (idem, 1996, 2000). Essas são apenas algumas das inúmeras formulações teóricas do autor.
Os conceitos proposto por Milton Santos se associam de forma bastante coerente e complementar, criando uma proposta de método ao mesmo tempo poderosa, rigorosa e, de certa forma, versátil. Milton Santos deixou um legado: suas teorias têm sido usadas em estudos que envolvem temas, contextos e escalas as mais diversas, não só na geografia mas nas ciências sociais como um todo. Sua influência no contexto mundial só não é maior pelo simples fato de que a maior parte da sua obra e de suas teorias ainda não foram traduzidas para o inglês, tarefa na qual temos nos engajado ultimamente (Melgaço, 2013).
Apesar de Milton Santos nunca ter escrito nada diretamente ligado às discussões sobre vigilância ou controle, e poucas vezes ter tocado em assuntos como segurança e violência, sua teoria traz uma série de reflexões teóricas que podem servir de base para a análise desses temas, como no que diz respeito às relações entre espaço e informação. Para Santos, é justamente a informação que dá as bases técnicas para o atual período. É através dos diferentes usos da informação, por exemplo, que a globalização se dá como fábula, perversidade e possibilidade (Santos, 2000).
Milton Santos define o meio técnico-científico e informacional a partir de uma conjunto de características como: unicidade técnica, alargamento dos contextos, convergência dos momentos, cognoscibilidade do planeta e aceleração contemporânea (idem, 1993; 1996; 2000). Tais conceitos nos ajudam a entender como a informação passa a ser fator fundamental para o entendimento do tempo presente, sobretudo em um momento em que as redes e os lugares travam cotidianamente um embate dialético. E esse espaço cada vez mais informatizado cria as condições necessárias para que uma “sociedade da vigilância” (Lyon, 2001) se instaure.
Desde a morte de Santos em junho de 2001, muitos eventos e transformações tecnológicas aconteceram. Logo em setembro do mesmo ano, o mundo conheceu o ataque às torres gêmeas de Nova Iorque, um evento que alterou a forma como segurança e vigilância são promovidas em todo o mundo. Surgiram também as redes sociais como o Facebook, o já aposentado Orkut, o Twitter e o Youtube. Wi-fi passa a ser uma palavra do dicionário português. Os celulares se transformaram em smartphones, fazendo com que a internet não se limitasse mais a um computador, mas passasse a ocupar as ruas. A expressão “conectar-se à internet” passa a fazer menos sentido: estamos sempre de certa forma conectados. Objetos antes apenas analógicos se tornam digitais e são capazes de gerar e transmitir mais e mais dados pela internet. Surgem a internet das coisas e o Big data. Surgem também novas metáforas como cidade 2.0 e smarcities.
Com essas novidades tecnológicas, novas formas de monitoramento aparecem. Ao mesmo tempo que o estado reforça seu papel de vigilante (veja por exemplo o caso da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos – NSA e as revelações de Edward Snowden), outras formas laterais e de contravigilância emergem. Os cidadãos conhecem novas possibilidades de ação até então impossíveis antes dessas inovações dos últimos anos. Novos formas de solidariedades e de resistências surgem nos lugares.
De certa forma, as cidades de hoje se transformaram em relação às cidades que Milton Santos vivenciou. O urbano nunca foi tão digital e informacional. E tudo indica que essa tendência só tende a aumentar com a banalização de tecnologias como os drones e os Google glasses. Estaríamos entrando em uma novo momento técnico? Ou seria este momento apenas uma intensificação daquilo que Milton Santos descreveu como meio técnico-científico e informacional? E mais importante, de que maneira as reflexões trazidas por Santos podem nos inspirar no entendimento do espaço hoje, cada vez mais informatizado e vigiado? São essas algumas das indagações que iremos levantar e buscar responder em nossa intervenção.

Palavras-chave: geografia, vigilância, internet, Milton Santos.

Referências:
Lyon, D. (2001). Surveillance society: Monitoring everyday life. Buckingham: Open University Press.
Melgaço, L. (2013)., Lucas. Security and Surveillance in Times of Globalization: An Appraisal of Milton Santos’ Theory. International Journal of E-Planning Research, 2(4), 1-12.
Santos, M. (1978). Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec-Edusp.
Santos, M. (1993). A Aceleração Contemporânea: Tempo Mundo e Espaço Mundo. In: Santos, M., Souza, M. A., & Scarlato, F. (Eds). O Novo Mapa do Mundo: Fim do Século e Globalização. São Paulo: HUCITEC-ANPUR.
Santos, M. (1996). A Natureza do Espaço: razão e emoção. São Paulo: Hucitec.
Santos, M. (2000). Por uma Outra Globalização: Do Pensamento Único à Consciência Universal. Rio de Janeiro: Record.
Santos, M. (2001). O Papel Ativo da Geografia: um manifesto. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales Universidad de Barcelona, 270.
Santos, M. (2002).O Tempo nas Cidades. Ciência e Cultura, 54(2), 21-22.