Sob a pele: de implantes a chips contraceptivos

#95

Daniela Tonelli Manica

A tecnologia de implantação de cápsulas de silicone com hormônios para finalidades diversas (contraceptiva, ou de reposição hormonal) vem sendo estudada, desenvolvida e empregada há algumas décadas. Recentemente, foi amplamente divulgada a perspectiva de lançamento, nos próximos anos, de “chips” contraceptivos no mercado farmacêutico. A proposta desta comunicação é discutir os princípios dessa técnica de uso de substâncias (hormônios, no caso), baseada em suporte subcutâneo que, através de mecanismos similares, libera periodicamente uma pequena parte das substâncias neles contidas na corrente sanguínea.
Para tanto, partirei do caso que estudei em minha pesquisa de doutorado (Manica, 2009) sobre a trajetória do médico e pesquisador, professor da Universidade Federal da Bahia, Elsimar Coutinho, conhecido pela apologia à supressão da menstruação em mulheres durante sua vida fértil. Pretendo recuperar algumas informações sobre o surgimento e estabilização dessa técnica no Brasil, trabalhando algumas de suas especificidades, e apontar como essa discussão foi atualizada pela divulgação recente de sua variação high-tech que se anuncia com a utilização dos chips, que prometem um (auto)monitoramento digital da quantidade de liberação dessas substâncias pela própria usuária.
Na minha tese, procuro mostrar que a formação de Coutinho como pesquisador coincide com um momento de efervescência em busca de técnicas diversas de “controle da natalidade” expressão que, posteriormente, foi substituída pelas ideias de “planejamento familiar” e “regulação da fecundidade”. Ele esteve envolvido, como jovem professor e pesquisador na Universidade Federal da Bahia, em pesquisas sobre fisiologia reprodutiva, que acabaram levando à revelação dos efeitos contraceptivos de uma substância derivada da progesterona. O uso desse hormônio seria, posteriormente, estabilizado no formato dos contraceptivos injetáveis de depósito (de uso mensal ou trimestral). Processo que envolveu diversos embates e polêmicas. Atualmente esse método está presente no mercado brasileiro, disponibilizado por diversos laboratórios farmacêuticos (o nome comercial mais conhecido é Depo-Provera).
Coutinho se especializou no estudo de métodos alternativos à “pílula” – técnica de contracepção hormonal pioneira e mais conhecida, e até hoje mais amplamente utilizada. Lidou, para isso, com uma das principais dificuldades na formatação do uso desses hormônios com finalidade contraceptiva: o efeito de alteração nos padrões de sangramento menstrual que as variações bioquímicas/hormonais provocavam.
Desde o surgimento da contracepção hormonal, na década de 1960, teria sido possível um uso contínuo dos hormônios que permitisse, para além do efeito contraceptivo, “suspender” os sangramentos menstruais. Contudo, a formulação elaborada compreendeu a adoção de um regime de uso de hormônios em forma de pílulas orais, a serem tomadas uma vez ao dia por 21 dias consecutivos, com uma interrupção subsequente de 7 dias (através de uma pausa na ingestão das pílulas ou a utilização de um placebo), durante os quais deveria ocorrer um sangramento similar ao menstrual.
Esse sangramento, contudo, não é considerado pelos médicos uma menstruação no sentido convencional, e sim um efeito da queda brusca da taxa dos hormônios que estavam sendo ingeridos. Trata-se, acima de tudo, de uma espécie de mímese do que ocorreria “naturalmente” -efeito que foi absolutamente fundamental para a aceitação social da pílula. Uma interrupção prolongada dos sangramentos que não fosse devida à gestação, potencialmente possível com a ingestão contínua destas substâncias, seria atribuída a algum tipo de problema de saúde ou mesmo a uma intervenção excessiva, indesejada e/ou insegura no corpo feminino.
A primeira pílula anticoncepcional foi, portanto, deliberadamente formatada para reproduzir os sangramentos menstruais, em função da sua viabilidade comercial e mercadológica e dos embates nos quais se disputavam sentidos sobre o corpo reprodutivo feminino e suas peculiaridades. Desta maneira, a tão almejada desvinculação entre sexualidade e reprodução tornou-se possível de maneira relativamente discreta e eficiente.
Ao perceber a restrição colocada pela obrigatoriedade de “mimetizar” os sangramentos, Coutinho investiu, em sua trajetória, tanto no estudo e desenvolvimento de técnicas alternativas (como principalmente os injetáveis e implantes subcutâneos) como também na sua legitimação perante as usuárias e a opinião pública em geral.
O médico é bastante conhecido pela publicação do livro Menstruação, a sangria inútil (Coutinho, 1996), no qual defende que, no estado de “natureza”, as fêmeas estão frequentemente grávidas ou amamentando, e portanto, sem menstruar. A menstruação, tal como vivenciada pelas mulheres contemporâneas (que têm uma taxa de fecundidade muito menor do que suas bisavós) seria, pelo contrário, um fenômeno recorrente do controle que a sociedade foi capaz de exercer, com bastante eficiência, sobre a fertilidade.
As pesquisas com implantes subcutâneos em Salvador foram iniciadas por Coutinho no final da década de 1960, a partir de um convênio com o Population Council – instituição fundada naquela época para recolher recursos de agências de financiamento estadunidenses (como a Ford e a Rockefeller) - para a realização de pesquisas na área da contracepção.
A narrativa de Elsimar Coutinho sobre essas pesquisas com os implantes, em sua autobiografia, recoloca várias questões importantes para compreender a sua trajetória e a dessas técnicas: recompõe as diversas alianças, atores e redes, que compunham as pesquisas clínicas que realizava (universidade, pesquisadores, indústria farmacêutica produtora das substâncias - dos hormônios às cápsulas de silicone -, agências de fomento à pesquisa com contraceptivos, instituições internacionais interessadas no controle populacional).
Procurarei recuperar, na comunicação, alguns dos principais aspectos do processo de desenvolvimento desta técnica, que nos permite pensar diversos elementos em jogo na elaboração de um determinado produto voltado à gestão da fertilidade. Como defendo na tese, no caso dos implantes especificamente, houve uma série de discussões, trazidas sobretudo pelos movimentos feministas que estavam, justamente, em processo crescente de articulação, a respeito da capacidade de controle das usuárias sobre esse processo.
A implantação (como também, e sobretudo, a retirada) das cápsulas de silicone é um procedimento médico que envolve um aparato técnico e uma expertise e, portanto, uma relação diferenciada entre médico e paciente da que é possível com o uso da pílula, por exemplo, no qual basta a interrupção da administração oral para deixar de sentir os efeitos das substâncias.
A produção e comercialização de implantes contraceptivos é disponibilizada, no Brasil, tanto pela indústria farmacêutica quanto pelo laboratório farmacêutico desenvolvido por Elsimar Coutinho no Centro de Pesquisas e Assistência em Reprodução Humana (CePARH), que criou em Salvador. Pretendo mostrar essas duas variações da técnicas de uso de implantes hormonais, e explorar a partir de sua comparação algumas questões, como: a produção em massa para grandes mercados farmacêuticos x atendimento individualizado e formulações manipuladas; a eficácia da técnica e seus efeitos colaterais; bem como os principais pontos levantados pelos movimentos feministas acerca das limitações do controle que as mulheres são capazes de exercer sobre esse tipo de técnica.
Algumas dessas discussões foram atualizadas com o anúncio, no início de 2014, do lançamento de microchips contraceptivos, também de uso subcutâneo e prolongado (com duração de até 16 anos), e utilizando hormônios similares aos dos implantes inventados na década de 1970. Procurarei explorar como, nesse processo, os sentidos de implantes e microchips se confundem, e como a divulgação do novo produto provocou uma re-apresentação do primeiro. Além disso, pretendo discutir, ainda prospectivamente, alguns dos problemas relacionados a controle e auto-monitoramento (re)colocados no anúncio, ainda relativamente prematuro, dessa tecnologia.

Palavras-chave: chips contraceptivos, tecnologia, implantes.