Videovigilância e Megaeventos: A rotinização da excepcionalidade nas práticas de segurança pública no Rio de Janeiro

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Rafael Barreto de Castro
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro

Na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/Brasil), o tema da vigilância por câmeras tem sido frequentemente retomado em discussões sobre segurança. Assunto diário e sempre dramático em manchetes de jornais, conversas cotidianas ou mesmo como objeto de estudo dos ditos “especialistas”, a preocupação com os episódios de violência e o clima de temor e caos que estes instauram apontam a necessidade de intervenções urgentes e eficazes não só por parte de iniciativas privadas, mas também por parte do poder público. E parece que, neste sentido, as câmeras de vídeo vêm se constituindo como entidades privilegiadas.
No que tange especificamente às iniciativas e práticas de segurança pública na cidade no Rio de Janeiro, um fator que recentemente acelerou a busca por soluções foi a sua escolha como local-sede dos jogos da Copa do Mundo FIFA de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de Verão (ou Olimpíadas) do ano de 2016. Visando, então, a preparar a cidade para os megaeventos, a Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG/RJ) inaugurou no ano 2013 o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), que busca integrar as atividades de segurança pública e defesa social de oito órgãos de atendimentos emergenciais aos cidadãos: CET-Rio, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil Estadual, Defesa Civil Municipal, Guarda Municipal, Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).
O objetivo é, a partir desta associação de forças, aumentar a quantidade de dados disponíveis, melhorando e agilizando os processos de tomada de decisões, principalmente em situações de emergência, por parte dos gestores. Os oito órgãos têm ali não só os seus serviços de atendimentos emergenciais como também os de supervisão de imagens. Todo e qualquer sistema de câmeras operado por esses órgãos deverá chegar ao Centro Integrado.
Desde o início das atividades de videovigilância urbana no Rio de Janeiro, oficialmente inauguradas em junho de 2005, esta é provavelmente a primeira grande transformação nas práticas desenvolvidas pela SESEG/RJ. De acordo com o subsecretário de Modernização Tecnológica, a proposta para o novo CICC foi elaborada a partir de experiências bem sucedidas, nacional e internacionalmente, e está apoiada na ampliação do sistema de vigilância, com expansão dos postos de trabalho e supervisão da Polícia Militar, permitindo o intercâmbio de informações e de imagens entre os oito órgãos. Desta forma, o CICC tenta colocar em prática uma espécie de funcionamento considerado “ideal” no sentido de atingir bons resultados. Esta parece, então, uma oportunidade ímpar, um importante processo a ser acompanhado por aqueles interessados em discutir os fenômenos urbanos, o papel dos grandes eventos na reconfiguração das cidades e especialmente os efeitos performados pelas práticas de vigilância/monitoramento por câmeras de vídeo.
Entendemos que esses dispositivos atravessam a constituição de nossa sociedade e a ela encontram-se intimamente entrelaçados, de tal modo que uma pesquisa que os coloque em foco pode muito nos ensinar sobre a configuração e as formas de gestão da sociedade, bem como sobre nossos modos de aí nos relacionarmos.
E mais: para além da compreensão de que a tecnologia é imanente à sociedade, argumentamos que os dispositivos tecnológicos não são meros objetos ou instrumentos totalmente determinados pela vontade humana, mas entidades que formam uma rede que “faz fazer” – portanto, nos mobilizam, desviam nossas ações. Segundo nos ensina a Teoria Ator-Rede (TAR), os não-humanos também têm agência. Isso significa pensar como a sociedade se produz, tendo em vista a participação da tecnologia, e como as conexões entre atores humanos e não humanos constroem o social, produzindo ressonâncias em nossa sociabilidade.
O alinhamento com esses referenciais nos coloca, de imediato, em uma perspectiva que privilegia as conexões e as associações, propondo tomar o “social” – que tem sido frequentemente utilizado para qualificar, justificar e explicar uma realidade estável e pronta – como efeito de associações e que, portanto, deve ser descrito, investigado, explicado. Neste sentido, a TAR configura-se, sobretudo, como um método capaz de instrumentalizar o pesquisador a rastrear as associações que compõem tal domínio. Alguns aspectos, portanto, singularizam essa abordagem: (1) é permitido também aos não-humanos desempenhar o papel de actantes, pois assim como os ditos “atores sociais” estes estabelecem associações e participam do curso da ação; (2) o “social” não está dado de antemão, não é substância nem adjetivo; ele é movimento, efeito de associações e, portanto, deve ser descrito, investigado, explicado; e (3) os enunciados produzidos pela pesquisa atuam na produção de coletivos, evidenciam associações e, portanto, reagregam o “social”.
A proposta da TAR de tornar rastreáveis as associações se afasta de qualquer busca por uma causalidade linear ou mesmo pela busca da Verdade, na medida em que a lógica que rege as associações entre os actantes do coletivo é a da tradução. Ou seja, as ações realizadas no coletivo pelos actantes não são meros transporte de algo que se mantém fiel, sem desvio, mas antes produzem transformações – traduções – que devem ser passíveis de ser rastreadas. Na medida em que um coletivo é configurado por uma heterogeneidade de actantes que se associam segundo a dinâmica da tradução, seguir seus enunciados, seus fluxos e suas versões pode ser uma boa estratégia para compreender a realidade em sua ontologia múltipla – o que nos aproxima das proposições da pesquisadora Annemarie Mol (2002, 2008), para quem que a realidade não é um dado, mas antes uma produção, atravessada e manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas. E neste sentido, ressalta a autora, é possível que várias realidades coexistam, como que distribuídas, sem que haja qualquer conflito, negociação, sem que elas se associem de alguma forma. Por outro lado, se diferentes realidades de algum modo se conectarem, tensões podem ser estabelecidas no sentido de definir uma ontologia vencedora.
E é justamente quando os debates se acirram e as disputas se tornam acaloradas, que podemos cartografar as controvérsias, sendo justamente no vigor destas que as entidades que compõem o social se tornam mais visíveis, possibilitando seu rastreamento. Segundo o sociólogo Bruno Latour, em nossas pesquisas, devemos alimentar-nos das controvérsias, deixando que a ordem seja encontrada por aqueles envolvidos nos embates, ao invés de impor esta ordem antecipadamente através de alguma categorização:

(...) A TAR alega que encontraremos uma maneira bem mais científica de construir o mundo social, caso nos abstenhamos de interromper o fluxo das controvérsias. (...) A busca de ordem, rigor e padrão não é de modo algum abandonada. (...) A TAR sustenta ser possível rastrear relações mais sólidas e descobrir padrões mais reveladores quando se encontra um meio de registrar os vínculos entre quadros de referência instáveis e mutáveis, em vez de tentar estabilizar um deles (Latour, 2012, p. 44-45).

Retomando nossa proposta, buscaremos então, tendo por base tais referenciais, problematizar as conexões híbridas entre tecnologia e sociedade, tendo por foco o fenômeno da vigilância urbana por câmeras, tal como este tem sido traduzido e performado na cidade do Rio de Janeiro. Neste sentido, destacamos aqui o papel importante desempenhado pelos grandes eventos no fortalecimento desse fenômeno, analisando as apropriações e os principais temas que tem orientado e estabelecido a agenda dos coletivos articulados às práticas de segurança pública.

Palavras-chave: megaeventos, risco, segurança, videovigilância.