A MÁSCARA ANÔNIMA DA ANARQUIA: a webpage do anonymous e a estetização da política

#84

IVAN CAPELLER

O que se coloca em questão neste texto é o conflito entre duas visões políticas de esquerda acerca do sentido político da violência das manifestações e protestos ocorridos no Brasil em 2013.
Estas visões são contraditórias entre si, pois atribuem sinais opostos de valorização política do sentido dos eventos em questão, mas também apresentam contradições internas à própria articulação do(s) seu(s) discurso(s): se a posição revolucionária ou reformista tradicional critica a violência das ruas a partir de sua ausência de objetivos ideológicos e estratégicos claros, recusando-se a reconhecer nesta violência o signo de um poder constituinte ainda inarticulado, os sucedâneos da outrora chamada “nova esquerda” contentam-se com a celebração dos novos dispositivos e meios de mobilização da multidão sem problematizá-los como tais; ambas as posições escamoteiam precisamente o problema da violência popular e de seu sentido político possível, atendo-se aos quadros da legalidade democrática institucional, no caso da primeira, ou pressupondo resolvidas e superadas as contradições da sociedade realmente existente na esfera pública da internet, no caso da segunda.
Como determinar o sentido político da violência não só na urgência das ruas, em disputa pela hegemonia política do poder constituinte, mas também na urgência das mídias em disputa pela hegemonia ideológica do sentido deste sentido? No espectro de uma violência de rua considerada anárquica porque irracional e fora de controle, portanto impensável e indizível, misturam-se alhos e bugalhos e confunde-se o preto e o branco, gerando-se apenas uma recusa generalizada das manifestações e protestos ou sua “fuga para frente” no espaço virtual da Internet em que todos os gatos são pardos. Assim, à face coberta de preto dos Black Blocks, quase sempre marginais às próprias manifestações e oriundos da periferia e dos subúrbios pobres, associa-se o anonimato da máscara branca de Guy Fawkes e suas conotações aristocráticas e “frondistas” bem ao gosto da pequena classe média pseudo-radicalizada dos centros urbanos que engrossou as manifestações em certo momento.
Nesse sentido, a relativa benevolência com que o fenômeno dos Anonymous foi tratado pela mídia é reveladora: na contramão do coletivismo ativista dos Black Blocks, gestado na Alemanha dos anos 1980 a partir de uma série de experiências empíricas de confronto com as forças de segurança do Estado, o Anonymous veicula o gênero de pseudo-anarquismo niilista, individualista e autoritário, que pode ser traçado historicamente desde Max Stirner e Netchaiev. Sua origem recente, no entanto, remete-nos ainda uma vez à mídia entendida não só como meio, mas, sobretudo, como fonte primária de informação das novas gerações: um filme hollywoodiano baseado em uma história em quadrinhos acerca de um inglês católico e rebelde, enforcado em 1606! Nada demais para um ciclo de protestos em que grande parte da multidão entoava slogans publicitários da televisão como se fossem palavras de ordem políticas de grande importância enquanto figuras provenientes dos seriados e desenhos animados outrora carinhosamente apelidados de “enlatados”, como o Batman, lideravam marchas e participavam da ocupação de prédios públicos...
Não há como negar, porém, a pregnância específica que a máscara de Guy Fawkes adquiriu nas últimas manifestações, tanto nas ruas como nas mídias, chegando mesmo a adquirir um estatuto emblemático que é ainda um sintoma da dupla máscara da anarquia. Embora o fenômeno dos mascarados anônimos seja aparentemente o mesmo tanto no caso dos Black Blocks como dos Anonymous, a grande mídia demonstrou uma atitude muito mais ambígua, e relativamente tolerante, para com os individualistas anônimos e suas máscaras brancas e sorridentes do que no caso anterior. Não por acaso, a violência obscena protagonizada nas ruas por estes mascarados em relação aos militantes de esquerda e suas bandeiras é uma violência tipicamente intimidante e repressiva que se coloca como violência suplementar à violência das forças repressivas do Estado, aproveitando-se do estado de exceção efetivo para brandir o fantasma do golpe e da ditadura fascista.
A esta contradição da grande mídia articula-se a contradição fundamental das novas mídias e de seus defensores, ainda presos a ingênuas posições “progressistas” que postulam o caráter revolucionário dos novos meios de comunicação, apenas a partir de seu maior ou menor grau tecnológico de inovação: é precisamente a Internet, com suas novas plataformas digitais, que dispensa a grande mídia, estatal ou não, da promoção e difusão do caráter proto-fascista de fenômenos como o Anonymous. Este se apresenta como um Big Brother das novas redes sociais de comunicação, assimilando de forma kitsch e grotesca toda a estética totalitária do século passado - herdada do rádio, do cinema e da televisão - para fomentar o medo generalizado e despertar a ansiedade da população, com a conseqüente busca por soluções políticas autoritárias. No exato momento histórico, em que o estado de exceção se torna cada vez mais a norma (Benjamin, 2012, p. 13), a multidão deve se exibir integralmente em espetáculo e colaborar com sua própria captura por meio das redes midiáticas que supostamente a libertam do jugo do controle estatal.
Para Giorgio Agamben, “a forma extrema da apropriação do comum é o espetáculo, ou seja, a política na qual vivemos.” (Agamben, 1990, p.82) O espetáculo estabelece uma cisão entre a vida realmente existente e a experiência que dela fazemos, tornando toda a experiência humana acessível a si mesma no presente do instante, porém alienada do seu conteúdo histórico concreto. O momento histórico da efetivação concreta da chegada ao poder, na Ucrânia, de Darth Vader, é precisamente o momento em que essa dimensão espetacular separada da realidade da vida invade, por sua vez, a própria vida e altera realmente suas coordenadas políticas: a máscara branca do Anonymous projeta sobre a anarquia uma identidade precisa e uniforme que pretende conferir a um suposto movimento uma falsa aparência de unidade não só ideológica, como também de propósitos e objetivos, ao contrário dos infinitos tons de cinza e preto que caracterizam os mascarados dos Black Blocks.
Assim, até mesmo a esquerda mais preparada para o embate ideológico acaba errando o alvo ao procurar identificar o estado de exceção e a anarquia dos quais os Black Blocks são a expressão e o sintoma com um movimento anarquista e/ou uma ideologia anarquista correspondente; por outro lado, fenômenos genealogicamente vinculados ao totalitarismo inerente à sociedade do espetáculo, como é caso do Anonymous, se abrigam sob a máscara ideológica da anarquia para mais intensamente restaurar “deus, o rei e a lei”, como já o percebera Shelley em seu poema The Mask of Anarchy.

Palavras-chave: anonymous, política, manifestações, Black Blocks.