Novos lugares, novos corpos: entre o “puro éter” e a “carne e osso”

#19

Henrique Cukierman

As redes de vigilância circunscrevem um novo lugar, de fronteiras difusas entre o real e o virtual, habitado por entidades híbridas talvez melhor descritas como fluxos de informação. Um novo corpo circula por esse novo lugar, um corpo híbrido de informação e encarnação, habitante de um mundo ambiguamente natural e construído, que só pode ser apreendido em meio a essa confusa mistura de ‘éter’ e ‘carne e osso’. Não, não se trata da filosofia de um autor acadêmico genial, trata-se apenas de uma proposição expressa exemplarmente por um delegado mineiro, quando, em 2005, durante minha pesquisa sobre o crime eletrônico no Brasil (Cukierman, 2006, 2008, 2010), declarou-me a respeito do seu trabalho, quase como um desabafo: “temos de transformar éter em carne e osso”.
O delegado não podia ser mais claro: as ações policiais e os dispositivos legais têm de enquadrar as supostas transgressões e ameaças, capturadas e registradas por essas redes, em suas materialidades de mundo real, em especial a mais encarnada delas: o corpo do transgressor. E aqui vejo-me, em última instância, diante de um argumento a favor da materialidade: ‘trazê-lo de volta’ ao mundo real ajuda a revelar ‘a carne e osso’ do que parecia ser ‘puro éter’. Só é possível ‘trazê-lo de volta’ porque tais redes de vigilância, por resultarem de um enredamento heterogêneo (e que, portanto, só pode ser entendido sociotecnicamente) feito de usuários, servidores, cabos, roteadores, endereços IP, provedores, regulações, câmeras, monitores de alta definição, etc, pode ser rastreado através de seus traços materiais e encorpados. Atravessar as fronteiras entre o mundo real e o virtual só é possível justo por não existir uma rede de vigilância puramente informacional, nem um corpo meramente carnal.
Dois caminhos poderiam ser explorados para melhor descrever essas redes de vigilância: um primeiro caminho seria o de tornar a falar da minha pesquisa sobre crime eletrônico; um segundo caminho seria o dos acidentes relacionados ao funcionamento dessas redes de vigilância, como no caso do brasileiro Jean Charles de Menezes, morto pela polícia britânica em Londres, em 2005, dentro de um trem do metrô, parado na estação Stockwell, depois ter sido confundido com um suspeito de terrorismo. A favor deste novo caminho, destaco a grande quantidade de relatórios detalhados oficiais e oficiosos à disposição na Internet, o que, creio, autoriza-me a falar com alguma propriedade a respeito desse acidente.
Retomemos a oposição do título: ‘éter’ e ‘carne e osso’. Em princípio, poderíamos refraseá-la, falando em ‘carne e osso’ como presença e em ‘éter’ como ausência. Mas opto por seguir as proposições de Katherine Hayles (1999), quem, inspirada tanto na cibernética dos anos 40 e 50 do século passado como na teoria da informação de Claude Shannon, adere ao que denomina de condição pós humana, caracterizada por um deslocamento do par presença/ausência pelo par padrão/aleatoriedade. Assim, é possível associar presença à materialidade e padrão à informação (ou informacionalidade, ou mesmo ‘desmaterialidade’). A contrapor a presença, a ausência, e a contrapor o padrão, a aleatoriedade. Ou, para nos mantermos fieis à teoria da informação de Shannon e à cibernética tributária da termodinâmica, a aleatoriedade é resultante do ruído que corrompe e desfaz o padrão, que bagunça, que desordena, que aumenta a entropia.
Nesses campos de batalha pós humanos pela ‘preservação da ordem’, no qual a vida combate ferozmente a entropia e o ruído, emergem o corpo e o seu lugar, em vez de somente encarnados e materiais, configurados também como padrões informacionais. Portanto, trata-se de uma luta entre o esforço em assegurar que este padrão permaneça intacto e a tentativa do ruído em rompê-lo. Verificá-lo passa pelo modo como Hayles resume a condição pós humana, a saber, como uma condição caracterizada pelo privilégio do padrão informacional frente à instância material, privilégio pelo qual o humano se constitui como um híbrido de organismo e máquina, com a consequente dissolução das demarcações absolutas entre existência material e simulação computacional. Inevitável, portanto, concluir que a condição pós humana é aquela na qual o humano se encontra indissociavelmente articulado a máquinas inteligentes.
Também vale a pena aqui redefinir o virtual não mais como puro éter, e o real não mais como pura materialidade. Ao contrário, é preciso dar lugar a uma percepção segundo a qual toda a materialidade é interpenetrada por padrões informacionais, e que todo padrão informacional é suportado por uma materialidade encarnada em uma multitude tangível de humanos e não humanos. No limite, toda entidade humana e não humana deste novo lugar, deste novo mundo, resulta de uma articulação ou de uma distribuição de diferentes densidades informacionais e materiais (devendo-se levar em conta a tendência à desmaterialização que configura o privilégio pós humano frente ao informacional). Descrevo, pois, as entidades como materialidades desmaterializadas, ou dito de outra forma, como justaposições de padrão e presença, ou o seu oposto, como dissociação entre presença e padrão, justamente o ocorrido no caso de Jean Charles de Menezes.
Jean Charles de Menezes foi confundido pela inteligência britânica com o suposto terrorista Hussain Osman, ou seja, o ruído ‘imagem de Jean Charles’ invadiu o padrão ‘imagem de Hussain Osman’, produzindo um acidente, e, portanto, produzindo uma situação propícia para se investigar um enredamento, pois é nela que se dá o momento em que os vínculos se rompem e em que, portanto, a aleatoriedade rompe o padrão, desnudando a rede de vigilância em sua materialidade desmaterializada. ‘Colado’ a um dos relatórios ingleses de investigação disponíveis na Internet, o Stockwell One, publicado pelo IPCC (Independent Police Complaints Commission) em 8 de novembro de 2007, procuro então descrever o que vem a ser uma rede de vigilância em termos atuais. Em oposição à ideia de controle presente no panóptico de Jeremy Bentham, que fazia do controle uma instância visível ainda que inverificável, Wendy Chun (2006, p. 9) propõe que “[a] linguagem digital torna os sistemas de controle invisíveis: não mais experimentamos o olhar visível ainda que inverificável mas uma rede de controle digital não visualizável”. Meu propósito é propiciar alguma forma de visualização inicial dessas redes, propósito para o qual um acidente como o ocorrido no caso Jean Charles mostra-se extremamente apropriado, justo porque, ao investigar o acidente, abre-se a rede de vigilância, ensejando uma descrição mais densa da sua constituição e do seu modo de (não) funcionamento.
Minha aposta é que, ao destacar de forma muito breve certas passagens do relatório de investigação Stockwell One (2007), o olhar possa, uma vez focalizado em minúsculos detalhes (e não, o que é o mais comum, em algumas ideias decorrentes de longos sobrevoos panorâmicos, onde os detalhes são irremediavelmente perdidos), dar conta de com quantos paus se faz essa canoa da vigilância. Jean Charles não terá morrido em vão. Deixa-nos um precioso legado, que procuro aproveitar como a minha forma de homenageá-lo: uma polícia que, encurralada pela resistência de amigos e familiares, aliados a ativistas britânicos, viu-se obrigada a revelar muitos dos detalhes do que se passou em aproximadamente meia hora daquela fatídica sexta-feira de julho de 2005.

Palavras-chave: redes de vigilância, Jean Charles de Menezes.

Referências bibliográficas:
Chun, W. (2006). Control and Freedom: Power and Paranoia in the Age of Fiber Optics. Cambridge: MIT Press.
Cukieman, H. (2010). O Cibercrime no Brasil. Revista Segurança, Justiça e Cidadania, ano II, 4, 173-218.
Cukieman, H. (2008). Novos corpos, novos crimes (e vice-versa). In Almeida, M. & Vergara, M de R. (Orgs.) Ciência, história e historiografia (p.219-230). Rio de Janeiro: Via Lettera – MAST.
Cukieman, H. (2006).O Cibercrime no Brasil. Relatório Final, Concursos Nacionais de Pesquisas Aplicadas em Justiça Criminal e Segurança Pública. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça.
Hayles, N. K. (1999). How We Became Posthuman : Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago: University Of Chicago Press.
Stockwell One. (2007). Investigation into the shooting of Jean Charles de Menezes at Stockwell underground station on 22 July 2005. Londres: Independent Police Complaints Commission. Recuperado em outubro de 2011 de http://policeauthority.org/metropolitan/downloads/scrutinites/stockwell/ipcc-one.pdf.