Ocupa Alemão e a disputa discursiva sobre o território

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Aline Stéfanie Correa

Na Plenária ocorrida no dia 17 de março, na Praça do terço em Nova Brasília no Complexo Alemão, na presença de representantes de movimentos sociais, lideranças e moradores da comunidade, foi apresentado o Manifesto “Queremos ser felizes e andar tranquilamente na favela em que nascemos”, circulado na internet e assinado por mais de 100 grupos entre coletivos de mídia alternativa, movimentos sociais, institutos de pesquisa, associações de moradores, etc., além das assinaturas individuais. Exponho aqui alguns trechos:
“(...) o braço do Estado que mais entra na favela é o braço armado. Sem escola não há pacificação, sem saúde não há pacificação, sem saneamento básico não há pacificação, sem lazer não há pacificação. O símbolo da paz no Rio de Janeiro não podem ser as armas, a pistola, o fuzil e os blindados. (...) é possível perceber que só a presença da polícia nos territórios ocupados não tem trazido a paz. Existem vários casos, em favelas com UPP de abuso de poder, arbitrariedades e desaparecidos, como é o caso do Amarildo, na Rocinha; e de jovens assassinados por policiais como: André de Lima Cardoso, 19 anos, Pavão-Pavãozinho; José Carlos Lopes Júnior,19 anos, morador de Sao Joao; Thales Pereira Ribeiro D’Adrea, 15 anos, Morro do Fogueteiro; Jackson Lessa dos Santos, 20 anos, Morro do Fogueteiro; Mateus Oliveira Casé, 16 anos, Manguinhos; Paulo Henrique dos Santos, 25 anos, Cidade de Deus; Aliélson Nogueira, 21 anos, Jacarezinho; Laércio Hilário da Luz Neto, 17 anos, Morro do Alemão e Israel Meneses, 23 anos, Jacarezinho. Nesta política não podemos deixar de citar os policiais mortos na ação suicida do Estado. Não aceitamos essas mortes, nenhuma vida vale mais que a outra e é preciso que o Estado se responsabilize. (...) Repudiamos totalmente a forma com que os meios de comunicação tem feito a cobertura da ação da polícia no Complexo do Alemão e em outras favelas. Entendemos que o morador de favela não pode ser visto como um inimigo. O governo diz que as favelas estão pacificadas, mas então porque tanta arma ostentada pela polícia? (...) As propostas de ‘PAZ’ devem ser construídas coletivamente com toda a favela. Não se constrói uma politica de paz, com o pé na porta, agredindo gratuitamente seus moradores, não se constrói paz com caveirão. No atual modelo, ‘independente de quem manda’, os moradores continuam sem ter sua voz ouvida.Temos a consciência que o pobre tem seu lugar.”

A indignação surge neste texto em vários momentos: (1) nas primeiras linhas, com a ausência do Estado em tantos campos e com a sua presença apenas militar e que ainda aparece por trás de um discurso de paz; (2) a atuação das UPPs e seus abusos de poder, arbitrariedades, jovens desaparecidos e mortes; (3) a forma como a mídia retrata a ação das UPPs; (4) violência gratuita da polícia contra os moradores; (5) a falta de diálogo com a população. Esta rápida exposição acima mostra a indignação contra a violência policial e a naturalização da morte do favelado. Mas ainda há outras esferas emocionais que podem ser evocadas. Como por exemplo, a busca por uma recuperação do sentido emotivo da morte na favela. A questão de fundo nesta indignação, vem da transformação da morte em número, a partir do esvaziamento emotivo feito pelos meios de comunicação da morte na favela ou da desvalorização da vida neste espaço.
Com relação à isso, percebemos que há uma luta pela apropriação do sentido do discurso sobre a realidade – travada contra o Estado-, mas também contra os meios de comunicação tradicionais. É nesse campo discursivo que o coletivo Ocupa Alemão entra buscando inverter o sentido negativo do entendimento do que é a favela.
Então, assim como governos locais, o Estado, representantes de outras estruturas de autoridade, a mídia e o público interessado, o próprio Ocupa Alemão está envolvido numa política de significação. O termo framing é utilizado para conceituar o ato de enquadrar, ou atribuir significado e interpretar eventos relevantes e as condições gerais, a fim de mobilizar potenciais adeptos, apoiadores e para desmobilizar os que são contra o movimento. Assim, os produtos resultantes da atividade de framing dentro do campo dos movimentos sociais são referidos como frames de ação coletiva.
O frame produzido e mobilizado pelo coletivo Ocupa Alemão que está sendo analisado aqui é, neste sentido, a violência policial na favela. É importante ressaltar que tais frames de ação coletiva não são entendidos apenas como estruturas cognitivas localizadas na mente dos indivíduos, mas eles também são propriedades de organizações ou coletividades e podem ser analisados como tal, se expandindo para master frames de acordo com a abrangência que a significação criada atinge na sociedade. Além disso, o conceito de master frames torna cada vez mais importante quando a escala de protesto e mobilização se expande, envolvendo coalizões de grupos e organizações do movimento, como acontece com a globalização recente ou transnacionalização dos protestos.
Assim, pode-se dizer que o Ocupa Alemão está envolvido numa política de significação, que não é dada por um coletivo apenas, mas por um processo de negociação que permeia as relações dos indivíduos que compõem o coletivo e do coletivo com outros grupos externos. Nessa política de significação, a rede de relações que um grupo consegue estabelecer é fundamental para que suas significações ganhem força e suas demandas sejam fortalecidas. Nesse processo de mobilização as emoções são fundamentais. Não somente as emoções morais, evocadas nos discursos do coletivo, como também os laços afetivos, que dão densidade e determinam o comprometimento com uma causa. Diani (2006) introduz uma ampla discussão sobre a importância das redes e sua relação com a participação. O autor entende a relação entre redes e participação como um caso específico da relação da ligação dos indivíduos, dando destaque à suas identidades, e a participação em grupos. Assim, afirma ele, que enquanto a identidade dos ativistas dos movimentos sociais é determinada pela combinação de suas múltiplas participações em grupos, os indivíduos, por serem membros de diferentes grupos e organizações, criam vínculos entre eles.
Esforçando-se para ressignificar o próprio espaço da favela, o coletivo Ocupa Alemão expõe através de seu canal de comunicação do Facebook imagens da favela, debates e eventos, além de convidar a população para eventos no Complexo. Tais atividades também são parte de uma busca por uma nova representação no espaço e no imaginário do que é a favela na cidade: a favela como espaço onde há problemas e não como um espaço que é problema. É a partir da atuação de tal coletivo que o presente artigo buscará discutir a presença policial e a vigilância que se passa neste espaço. Busca-se, assim, discutir a percepção do que é o território do Complexo Alemão, não em sua abrangência físico-geográfica, mas como campo de disputa discursiva e interpretativa na cidade. Passamos assim para uma análise da luta discursiva que perpassa a polícia, a mídia, os moradores e ativistas, atentando também para seus impactos.

Palavras-chave: Complexo Alemão, discurso, território.