A cura do amor: tecnologias de vigilância, controle e modulação dos afetos.

#65

Francine da Rocha Tavares

Pode-se dizer que a passagem do século XIX para o século XX foi de fato traumática para os habitantes das novas grandes cidades que se formavam. Sem competências sensíveis desenvolvidas para a nova realidade, os corpos daqueles que haviam deixado o campo para trabalhar na metrópole eram afetados intensamente pelos estímulos das novas tecnologias de transporte, pelas propagandas, pelas atrações de entretenimento repletas de emoções fortes e pelo novo ritmo da vida urbana.
Benjamin observou que o cinema, nesse período, funcionava como um treinador sensorial para o habitante da nova metrópole, além de uma opção de entretenimento para aliviar os corpos e as mentes estafadas pelas laboriosas horas de trabalho nas fábricas.
Partindo da hipótese de McLuhan de que a emergência de um novo meio é capaz de motivar modulações sensoriais em seus usuários, Vinícius Pereira (2013) defende que, atualmente, no lugar de novos meios, o que se encontram são diferentes combinações de tecnologias de comunicação que formam arranjos midiáticos e produzem novas linguagens.
Juntamente com as transformações do capitalismo nas últimas décadas, os acoplamentos tecnológicos midiáticos podem ser pensados como treinadores do aparato sensório-motor dos indivíduos contemporâneos.
Para o ativista italiano Franco Berardi “Bifo”, a desconexão entre a quantidade de informações geradas no ciberespaço e a incapacidade humana de assimilar essas informações com rapidez compatível, o que o autor chama de cibertempo, influenciam fortemente nas patologias da geração conectiva, nascida nos anos 90, que cresce em “simbiose com uma grade de inervações virtuais, próteses imaginárias, próteses psíquicas, próteses biônicas” (Bifo, 2007, p. 26). O trabalhador dessa geração, se localiza numa esfera tecno-social que satura o tempo de atenção e comprime a esfera da emoção e da sensibilidade.
Bifo trabalha com a hipótese de esgotamento orgânico em contraste com a promessa tecnológica de potencial ilimitado. Para ele, sensibilidade e sensualidade têm a ver com tempo, sendo a aceleração um empobrecedor das experiências. O tipo de capitalismo praticado atualmente, cujo ciclo econômico se volta para a valorização da produção de signos (entendido pelo autor como entidade dotada de dupla articulação: material e imaterial), atravessa a esfera social, psíquica, estética e existencial. Sendo assim, o semiocapitalismo exige a produção de um sujeito compatível com seu sistema.
Embora a perspectiva humanista moderna do ativista italiano aponte como saída uma tomada autônoma do processo de trabalho mental, ensaia-se neste trabalho a intenção de observar a bifurcação entre tecnologia, amor e sofrimento sob a perspectiva da modulação da sensibilidade em relação ao regime de afetividade emergente.
Para tanto, este artigo se propõe a pensar articuladamente as questões que emergem em dois textos encontrados na internet, não aleatoriamente. O primeiro, da revista IstoÉ, “O amor pode ter cura” e o segundo, cuja tradução foi postada em um blog chamado Relatos de uma Diva, “18 verdades cruéis sobre os relacionamentos modernos que você vai ter que encarar” .
Numa espécie de realização farmacológica do sonho futurista ficcionado no filme “Um brilho eterno de uma mente sem lembranças”, a matéria da IstoÉ mostra as alternativas que estão sendo desenvolvidas cientificamente para acabar com o sofrimento proveniente das relações amorosas. Além dos tratamentos terapêuticos para esse fim, comuns desde o início do século XX, a tecnologia farmacológica permite acelerar o processo de cura com uma droga que promete apagar as experiências ruins daqueles que amam demais.
Ao contrário do que pregava Santo Agostinho, o amor contemporâneo tem medida. Atualmente, a medida do amor, e de todas as emoções, é calculada de acordo com a lógica neoliberal do capital humano: qual é a utilidade do que você está sentindo? Para que essa emoção serve? Esse sentimento ajuda ou atrapalha seu projeto de empreendimento de si? Seu perfil emocional está de acordo com o programa de liderança da sua empresa? Você sabe como se manter emocionalmente saudável?
Entretanto, a vigilância e o controle, como alerta Fernanda Bruno, não são justificados e nem exercidos apenas pelo medo e pela promessa de segurança:
Os afetos e as subjetividades contemporâneas não encontram na vigilância apenas um meio de inspeção e controle ou de segurança e proteção, mas uma forma de diversão, prazer, sociabilidade. Além disso, é crescente a lista de dispositivos voltados para o automonitoramento, aliando vigilância, cuidado de si e otimização da performance em diversos campos da vida cotidiana: trabalho, saúde, produtividade etc. (Bruno, 2014, p.34).
O futuro de “Admirável mundo novo” parece cada vez mais próximo, onde já imagina-se não haver lugar para aqueles que celebram a vida dionisíaca, com suas incoerências, problemas, desconfortos, alegrias e tristezas. As estratégias de governabilidade (Foucault, 2010) estão tão refinadas quanto os mecanismos de controle que aparecem na obra de Aldous Huxley ou mais. O sofrimento, outrora considerado potencializador da criatividade humana e inerente às relações amorosas assim como à vida, em última instância, não encontra espaço-tempo na economia do amor “moderno”.
Mas enquanto a “droga do amor” (ou do “desamor”, do “dessofrimento” ou da “desvida”) não chega, sofre-se dele. E sofre-se ainda mais de um amor produzido numa velocidade tecno-informacional incompatível com a capacidade humana de assimilação, mas amplamente registrada pelos dispositivos de vigilância de empresas como o Facebook.
O interesse da rede social do Zuckerberg pelas variações emocionais de seus usuários tem crescido nos últimos meses. Em fevereiro de 2014, no Valentine’s Days (dia dos namorados americano), a equipe do Facebook Data Science divulgou um estudo mostrando que era possível prever quando um casal pretendia alterar o status de relacionamento nos perfis da rede. De maneira bem simples, o estudo se baseia no número e no tom das mensagens trocadas entre os parceiros. Os futuros casais costumam se comunicar com muito mais frequência nos 12 dias que antecedem a mudança do status, intensidade que se estabiliza por volta dos 85 dias após o início do namoro. A argumentação é que, após esse período, os casais passam a utilizar mais outras “mídias”, como telefone, SMS (atualmente, poderíamos dizer o Whatsapp) do que o Facebook.
Em junho do mesmo ano, a mesma empresa divulgou um polêmico estudo que comprovou a hipótese de contágio emocional nas redes sociais digitais. O estudo chegou à conclusão de que as pessoas expostas a um número menor de postagens de caráter emocional foram menos expressivas nos dias seguintes ao experimento, o que reforçou a noção de que a demonstração de emoções afeta o engajamento social online. O fato do Facebook ter alterado o modo de funcionamento do feed de notícias do site, fazendo com que um grupo de usuários recebesse uma quantidade maior de atualizações positivas enquanto o outro grupo recebesse mais atualizações negativas gerou mais uma das inúmeras controvérsias em relação à manipulação de dados sem o consentimento dos usuários.
É desse amor informacional, que se transforma em imagens e dados, que é monitorado, analisado e utilizado por uma infinidade de campanhas publicitárias de que se trata o segundo texto, que parece ter sido retirado da seção de autoajuda de uma estereotipada revista feminina, que não é científico e nem jornalístico, mas que foi compartilhado mais de dez mil vezes no Facebook, mais de mil no Twitter, curtido por mais de cinquenta blogueiros e comentado (apenas no post original) por mais de duzentas pessoas.
A movimentação causada pelo texto “18 verdades cruéis sobre os relacionamentos modernos que você vai ter que encarar” fez emergir questões de maneira espontânea, autônoma e carregada de sentimentos, o que o torna um ator de grande importância para um estudo que se propõe a pensar as modulações do amor contemporâneo. Que verdades são essas? Por que são cruéis? Em que consistem os relacionamentos modernos? Por que temos que encarar/aceitar/nos moldar a esses relacionamentos?
Em suma, tanto o autor (um homem, que escreveu o texto original no blog Thought Catalog que teve mais de 1400 comentários) quanto a blogueira brasileira que traduziu o texto e as pessoas que comentaram a postagem concordam que há uma mudança na maneira como os relacionamentos amorosos acontecem atualmente. E essa mudança está fortemente ligada ao modo como as tecnologias móveis e digitais medeiam as relações hoje.
Evidentemente, não se trata de traçar uma relação causal entre sofrimento – cura do amor – e tecnologia, mas considerar o fato de que as pessoas relacionam as mudanças nos modos como se dão as relações afetivas com tecnologia e incompatibilidade sensível (e aqui entende-se corpo e mente), de maneira espontânea, é de grande riqueza para esta pesquisa.
A hipótese trabalhada neste trabalho será de que esta sociedade tem produzido um tipo de amor informacional, localizado no ciberespaço (mas não apenas), para o qual o corpo humano ainda não foi modulado. E essa incompatibilidade tem a ver com o tempo.
Atualmente, não se tem tempo para esperar o tempo do sofrimento passar, primeiro por que não tem como mensurar quanto tempo isso leva, o que foge da lógica de controle de risco; segundo por que no espaço informacional no qual vivemos, o tempo é outro. Veloz, escorregadio, produtivo, eletrônico. Tempo é dinheiro. Diferente do tempo orgânico, do tempo humano, por mais tecnológicos que sejamos.
Pode-se pensar que as tecnologias funcionem, em algum nível, como produtoras e moduladoras desse amor contemporâneo. Pode-se pensar que, enquanto os corpos não são reprogramados, as drogas ajudem a solucionar o problema da incompatibilidade sensível-espaço-temporal. A droga que cura o amor, na verdade, acelera o tempo de cura do sofrimento. Ou, como diria Nietzschie sobre o livramento das marcas dolorosas e do ressentimento, acelera a digestão da dor. “E digerir é um processo que só pode se dar no tempo, que necessariamente dura e que segue ritmos próprios, incontroláveis e não-lineares” (Ferraz, 2008, p.189).
No regime afetivo contemporâneo, o que se observa não é o desenvolvimento cognitivo de uma competência que permita ao corpo lidar com o sofrimento do amor. Com o diagnóstico de uma patologia calcada no sofrimento afetivo cuja cura se dá por meio de uma droga, ou ainda com a potencial modulação de um corpo habilidosamente insensível à dor do amor, produzem-se corpos incapazes de lidar com incoerências, perdas, separações, problemas e diferenças inerentes às relações amorosas e outras, enfim, intrínsecas à vida.
Assim, apresenta-se a proposta de refletir qualitativamente sobre a construção do sofrimento do amor declarado nos comentários e no texto “18 verdades cruéis sobre os relacionamentos modernos que você vai ter que encarar” tendo em vista a abordagem teórica apresentada anteriormente e as implicações éticas, políticas, econômicas e sociais que alternativas como a da “droga do amor” podem motivar.

Palavras-chave: tecnologia, vigilância, controle, relacionamentos.

Referências:
Bifo, F. B. (2007). Generación Post-Alfa: patologías e imaginarios en el semiocapitalismo. - 1a ed. - Buenos Aires: Tinta Limón.
Bruno, F. (2013). Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina.
Ferraz, M. C. F. (2008). Corpo, cérebro e memória na era da tecla save: Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Porto Alegre: Revista Educação e Realidade, 33(1).
Foucault, M (2010). O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes.
Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar.
Pereira, V. (2013). Entretenimento como Linguagem e Multissensorialidade na Comunicação Contemporânea. Anais do XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Manaus.
Singer, B. (2004). Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: Charney, L. & Schwartz, V. O Cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify.