O campo e a Copa: Antropologia, Jornalismo e manifestações na cidade do Rio de Janeiro

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Evandro José Medeiros Laia

A Copa do Mundo do Brasil, realizada entre os dias 12 de junho e 13 de julho de 2014, teve o Rio de Janeiro como um das 12 sedes, onde foram disputados sete jogos, entre eles a grande final. A movimentação de pessoas transformou um lugar com vocação cosmopolita numa espécie de esquina do mundo, com gente das mais variadas nacionalidades. E jornalistas do mundo inteiro também. Tudo isso exatamente um ano depois das manifestações de junho de 2013, marcadas pela ocupação das ruas do centro da cidade e também pela violência usada pela Polícia Militar na repressão dos atos. E mais ainda, pela multiplicidade de vozes em transmissões, ao vivo, pela internet, simultâneas às transmissões feitas pelos grandes veículos de comunicação, como as feitas pelo Grupo Mídia Ninja. Também é preciso levar em conta o número cada vez maior de jornalistas e midiativistas feridos neste tipo de protesto. De acordo com a presidente do Sindicato dos Jornalistas do município do Rio de Janeiro, Paula Máiran, foram mais de 90 agressões, registradas em boletins de ocorrência por 77 jornalistas da cidade, entre maio de 2013 e junho de 2014.
Considerei então este um ambiente produtivo para realização de um trabalho de campo, com o objetivo de observar como as tecnologias móveis, com destaque para o telefone celular, estão transformando a maneira de se fazer jornalismo na televisão, a partir da produção de imagens. Ou seja: mapear a rede em que estariam a princípio, incluídos repórteres, cidadãos que usam os smartphones para enviar imagens para as redações e ainda midiativistas, participantes ou não de coletivos. A proposta de um trabalho de campo partia da premissa de que eu, jornalista por formação e repórter de televisão até aquele momento, estaria lidando com questões que domino. Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, seriam inevitáveis os questionamentos dos colegas sobre o meu trabalho, numa perspectiva próxima à proposta da Antropologia Simétrica, de Bruno Latour (1994) e da Antropologia Reversa, de Roy Wagner (2010), nas quais os nativos pesquisados pelo antropólogo, de alguma maneira, também pensam o pesquisador, como se fizessem uma antropologia com os instrumentos que dispõem, obviamente diferentes dos que dispõem um pesquisador, impregnado de uma perspectiva acadêmica.
Numa tentativa de ampliar a rede de mapeamento, segui para as manifestações, anunciadas em redes sociais, ao mesmo tempo em que tive contato com redações e com coletivos. Foi assim, que descobri que a coisa não era bem o que parecia. Primeiramente porque muitos colegas de profissão, naquele momento enquadrados como meus nativos, não criaram, ao menos tão frequentemente como eu esperava, questionamentos contundentes, mostrando, por vezes, que entendiam muito bem do que se tratava o meu trabalho. Em segundo, e na minha opinião mais importante, porque a tentativa de classificação anterior ao campo mostrou-se quase inútil. Num mapeamento rápido, e ainda provisório, consegui definir algumas categorias nas quais classificamos os atores desta rede que tentamos observar durante este período: além dos repórteres, dos cidadãos que produzem imagens e enviam pelo telefone celular, e ainda dos midiativistas, observamos também a presença de figuras como os freelancers, que habitam o universo das redações, mas ao mesmo tempo flertam com os midiativistas, já que precisam ter entrada livre nas manifestações. Outro exemplo são os policias militares, que produzem imagens e as enviam para repórteres de confiança usando o popular aplicativo para smartphones, o Whatsapp. Também chamou a iniciativa das emissoras que dispõem um aplicativo próprio ou mesmo um número de telefone celular para receber imagens de telespectadores. Alguns jornais impressos também fazem isso e publicam os vídeos posteriormente em suas versões online, tornado-se concorrentes diretos das redes de TV, como ouvi de uma informante da TV Record Rio.
Estes são alguns exemplos de uma multiplicidade. A rede é bem mais extensa e complexa que eu pensava. Por isso, para o trabalho, escolhi como nó preferencial a perspectiva do repórter de rua, que tem como base a redação, mas ao mesmo tempo se insere em outras perspectivas, na tentativa de fazer a tradução depois, para os seus pares. Como o xamã, que nos grupos ameríndios faz a ponte entre o mundo que se vive e os outros mundos possíveis, de acordo com Viveiros de Castro (2010). Ou ainda como o etnógrafo, que precisa entrar em outros mundos para depois voltar e contar aos seus, numa tradução que sempre deixa para trás muita coisa. Na lógica do telejornalismo, é o repórter quem precisa traduzir as múltiplas realidades de uma cidade para seus pares, que assistem as matérias nos telejornais diários. Mas nem sempre os sentidos são iguais: muitas vezes um mesmo nome serve para designar coisas completamente diferentes, não porque a linguagem, o acesso a eles é diferente. Mas sim, porque eles de fato são coisas diferentes, em mundos diferentes. Um descompasse irreconciliável que define, na visão do antropólogo, não só a relação do etnógrafo com o nativo, mas, no limite, todo e qualquer tipo de relação social. Daí o conceito de equívoco (Viveiros de Castro, 2010), que será então essencial para chegar ao principal questionamento desta reflexão: Como é feita esta tradução, a partir do momento em que o repórter percebe que outros atores ocupam o espaço no qual ele tinha a prioridade?
As primeiras observações dão conta de uma relação que não parece ser amistosa no ambiente do meu trabalho de campo. Jornalistas com formação superior, trabalhadores de empresas de comunicação do Rio de Janeiro, em geral, durante a pesquisa, apresentaram profundos questionamentos com relação aos procedimentos e à conduta ética de midiativistas e produtores independentes de notícias. A situação parece ter sido agravada depois da morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, atingido por um rojão lançado por manifestantes durante um ato na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014. Passado algum tempo, é hora de retomar os dados recolhidos em campo e me debruçar sobre eles para a reflexão. Neste trabalho estão as minhas primeiras impressões deste processo. O objetivo é retornar a campo para novas entrevistas e vivências que foram necessárias, até a conclusão da minha tese, no Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRJ, que tem como titulo provisório: “O jornalismo em equívoco: as redes, o telefone celular e a (re)invenção do repórter”.

Palavras-chave: Copa do Mundo, manifestações, redes, telefone celular, jornalismo.