O “Cérebro criminoso”: observações críticas sobre o uso das neurociências cognitivas no sistema judiciáriounal

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cesar pessoa pimentel

Na década de 1980, o sociólogo francês Robert Castel diagnosticou o surgimento de certos tipos de vigilância, sutis variações das disciplinas novecentistas confluindo na previsão da conduta de indivíduos considerados desviantes. Haveria algo a mais nas configurações contemporâneas, talvez estendendo, refinando ou ainda recriando técnicas de conhecimento e controle do corpo que foram o ponto de partida para que Michel Foucault (1996) caracterizasse uma sociedade que, controla seus indivíduos pela observação e organização dos corpos, ou seja, pela vigilância. Simplificando a hipótese de Castel (1988), o surgimento da gestão de riscos substituindo ou se mesclando a um governo dos perigos, encontrava suporte em cálculos estatísticos de fatores impessoais, como idade, etnia e habitação, de modo a definir perfis individuais ou de grupo. Sumariamente, pode-se dizer que entre os esforços mais importantes desse modo de “governo dos outros” reside uma suposta capacidade de prever o comportamento e tratar precocemente indivíduos potencialmente perigosos.
O que vem acontecendo desde então no campo da prevenção do comportamento considerado perigoso? É esse o objetivo e interesse mais geral desse trabalho. Visamos em particular o uso muito recente e ainda em desenvolvimento das neurociências cognitivas no julgamento de indivíduos suspeitos de crime. Através do exame de usos já efetivos, mas também de propostas de organizações interessadas no uso judiciário das técnicas de neuroimagem pretendemos abordar três questões. Em primeiro, uma questão de caráter histórico: de que modo as imagens do cérebro passaram a ser atraentes para o uso legal? Em segundo, uma de caráter epistemológico: de que forma a neurociência formula a noção de responsabilidade e livre-arbítrio, noções fundamentais para seu ingresso no terreno jurídico? Em terceiro, uma questão que concerne diretamente às técnicas de vigilância e de gestão de risco: que modelo de penalidade está sendo proposto a partir da compreensão das neurociências no que concerne à causalidade no comportamento do criminoso?
Pretendemos tratá-las analisando três matizes de posicionamento perante a chamada neurolaw (uso da neurociência em tribunais de justiça). Essas três gradações representam o grau de envolvimento com uma reforma judiciária fundamentada nas ciências do cérebro não somente no tocante ao julgamento, mas também no caráter da penalidade. De fato, o grande alvo dessas propostas parece se referir ao motivo e finalidade da penalidade. Ao invés de o criminoso ser punido de acordo com o dano que provocou, a proposta é que sua punição tenha em vista sua provável reincidência, julgamento que leva em conta os efeitos comportamentais da ausência ou diminuição de autocontrole verificada no nível das funções cerebrais. Alguns autores, propõem levar em conta também o grau de neuroplasticidade do criminoso, ou seja, ainda que suas funções cerebrais estejam comprometidas, é importante verificar se estas podem ser modificadas (Eagleman, 2011). Antes de abordarmos tais posicionamentos, alguns tópicos referentes ao surgimento da neurolaw merecem esclarecimento.
1-O surgimento da “neurolaw”
Tanto na mídia impressa e televisa, como em livros de autoajuda e livros de divulgação escritos por neurocientistas, a expressão “revolução no conhecimento do cérebro” é insistentemente mencionada (Pimentel & Vaz, 2010). Geralmente, aparece acompanhada pela menção à “fantástica capacidade” de tecnologias como a ressonância funcional magnética, a tomografia por emissão de pósitrons e a tomografia computadorizada, entre outras, para visualizar áreas ativadas no córtex cerebral enquanto o indivíduo examinado executa tarefas como ler, observar cenas ou se recordar de certos eventos (Greco, 2006). Credita-se a tais tecnologias avanços na compreensão de tópicos como emoções em geral, sentimentos morais, autocontrole, planejamento a longo prazo, compulsão, adição em drogas, entre outros processos mentais e comportamentos.
Muitas críticas são feitas, inclusive por cientistas ligados diretamente à neurologia, à objetividade dessas novas tecnologias (Gazzaniga, 2011). Uma crítica comum se refere ao que é efetivamente representado através da imagem produzida por instrumentos como a tomografia computadorizada (Ortega, 2008). De fato, diversas inferências não verificadas validam seu uso corrente em pesquisas de laboratório, como por exemplo, o fato dessa tecnologia captar o fluxo sanguíneo no córtex cerebral e não a atividade sináptica, além de não haver sincronia exata entre esses dois processos. Pode-se duvidar igualmente do nexo declaradamente direto entre o desenvolvimento da neurociência e tais tecnologias, pois importantes autores como Ramachandran (2014) fizeram contribuições para a compreensão da representação do corpo no córtex cerebral a partir do uso de técnicas consideradas bastante rudimentares.
Não obstante, recentemente a credibilidade assumida pelas técnicas de neuroimagem tornou-se interessante para o campo jurídico, onde advogados, organizações de neurocientistas e de juristas vem insistindo no valor de prova judiciária dessas técnicas. O cenário onde a neurolaw tem sido proposta se refere predominantemente aos Estados Unidos. Em 2007, foi lançado o projeto Lei e Neurociência com o financiamento inicial de dez milhões de dólares pela Fundação McArthur (Goodenough & Tucker, 2010). A mesma fundação tem patrocinado juntamente com outras instituições treinamentos para juízes e advogados interessados em utilizar o conhecimento neurocientífico em suas práticas. Alguns centros universitários, como a Pensylvannia University já incluem disciplinas ligadas à interseção entre neurologia e Direito. Diante da demanda por conhecimento especializado, livros de autoajuda já foram lançados para advogados, caso de “Como a ciência pode fazê-lo um melhor advogado”. Centros de pesquisa já existem em Londres, Berlim e Milão, onde o desenvolvimento de pesquisas na área tem sido particularmente acelerado.
No entanto, um dos primeiros usos efetivos de dados extraídos do funcionamento cerebral de um réu se deu na Índia em 2008 aplicado a um julgamento de homicídio. Durante o processo, enquanto um dos acusados fazia relatos sobre seu envolvimento no crime, a atividade cerebral foi mensurada por uma técnica eletroencefalográfica e julgada compatível com a responsabilidade pelo crime. Todavia, em geral, as cortes judiciárias têm avaliado gráficos e outras técnicas de neuroimagem com cautela, baseado no argumento de que são persuasivas demais, ou seja, induzem o júri a uma posição como se os indícios técnicos suplantassem o valor do testemunho oral e outras evidências (Gazzaniga, 2011).

Uma penalidade prospectiva.
Um dos argumentos usados frente às críticas da validade da neuroimagem, vem do jurista Adam Lamparello (2012). Segundo o autor, outros mecanismos usados em rotina de tribunais, como perícias psiquiátricas ou mesmo o polígrafo são bem menos confiáveis e nem por isso questionados. Argumenta-se no mesmo sentido que as neurociências cognitivas ainda que não produzam provas fundamentais podem contribuir como fatores atuariais para a estimativa da reincidência criminal. Esses argumentos procuram ao mesmo tempo dar conta da inexatidão das neuroimagens e habilitá-las comparativamente a outros recursos utilizados em tribunal judiciário.
Para entender melhor os efeitos do nexo entre neurociência cognitiva e justiça, poderíamos descrever três posicionamentos. Um primeiro, formulado pelo neurocientista Michael Gazzaniga (idem) pode ser considerada o mais ponderado, já que o autor guarda reservas quanto à capacidade das técnicas de neuroimagem caracterizarem ou detectarem a longo prazo aquilo que o sistema judiciário entende como comportamento criminoso. A segunda, também formulada por um neurocientista, David Eagleman (2011), é bastante otimista em relação ao futuro do uso da neurociência no tribunal, acreditando que dilemas sobre o livre-arbítrio se tornarão menos influentes à medida em que essas categorias forem sendo substituídas pela estimativa da possível reincidência do criminoso. Nesse sentido, Eagleman acredita que o grande efeito da “neurolaw” é apagar os traços retributivos do sistema judiciário, transformando-o em uma justiça prospectiva, interessada naquilo que o criminoso irá fazer após ser punido e liberto. Em terceiro, a posição de Adam Lamparello (2012), professor americano de Direito que afirma veementemente que as neurociências já estão em posição de fornecer provas mais científicas do que quaisquer outras utilizadas em tribunal para a determinação de sentenças, sobretudo, em relação a criminosos com perfil de psicopatas. A questão essencial para Lamparello é preparar os agentes do sistema judiciário para lidar com os dados fornecidos por essas novas técnicas. Ao lado dessas iniciativas, todas ligadas ao cenário dos Estados Unidos, merecem atenção propostas e pesquisas brasileiras interessadas em relacionar comportamento criminoso a alterações funcionais e estruturais do cérebro (Barros, 2008).
A partir da análise dessas propostas esperamos obter um quadro mais estruturado dos seus efeitos sobre a penalidade. Importante mencionar que Eagleman (2011) propõe monitoramento precoces de possíveis criminosos propensos à reincidência. Essa dimensão virtual do crime poderia se tornar a mais fundamental do sistema judiciário? Em caso afirmativo, isso implicaria em maior tempo de retenção dos indivíduos, sobretudo aqueles considerados portadores de danos irreparáveis nos sistemas neurais responsáveis pelo autocontrole? Enfim, trata-se aqui de sistemas de monitoramento do comportamento no presente, mas de tecnologias que destacam a dimensão possível do comportamento. Mais ainda: ao invés de se monitorar o corpo à busca de fatores psicológicos, a dimensão somática, mais especificamente a do cérebro constitui o último e mais fundamental alvo de observação.

Palavras-chave: neurociências cognitivas, sistema judiciário, comportamento, tecnologias.

Referências Bibliográficas
Barros, D. (2008).A neurociência Forense. Revista Psiq Clin, 38(5), 205-206..
Castel, R. (1988). A gestão de riscos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Eagleman, D. (2011). Incognito. Rio de Janeiro: Rocco.
Foucault, M. (1996). Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.
Gazzaniga, M. (2011). A neurociência no Tribunal. Scientific american,108.
Goodenough, O. & Tucker, O. (2010). Law and cognitive Science. Annual ver law soc.., 6, 61-92.
Greco, A. (2006). Cérebro- a maravilhosa máquina de viver. São Paulo: Terceiro nome.
Lamparello, A. (2012). Using cognitive neuroscience to predict future dangerouness. Columbia human rights review, 480-539.
Pimentel, C. & Vaz, P. (2012). Visualizando o “eu”: a dimensão política das imagens cerebrais. Intercom.
Ramanchandran, V.S. (2014). O que o cérebro tem para contar. Companhia das letras: São Paulo.