Redes, revoltas e afetos: hackers e os novos movimentos sociais

#100

Giuliano Djahjah Bonorandi
Adriano Belisário

Desde 2011, com a eclosão da revolta egípcia na Praça Tahir, passando pelos centros urbanos da Tunísia, Espanha, Estados Unidos, Turquia, Brasil e México, e outras diversas cidades e países, se efetuaram redes de indignação e colaboração (Castells, 2013) que utilizam as novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) para alavancar protestos massivos, acampamentos e outras ações políticas estratégicas sem comandos hierárquicos ou formas de organização centralizadas.
É importante pensar no papel que o uso das NTICs cumprem nesse processo, notadamente no arranjo técnico das redes distribuídas de comunicação que hoje chamamos de Internet. É muito significativo seu caráter aberto, onde historicamente, novos usos foram sendo criados para efetivar processos de cooperação. Se nos anos 80, a Internet, saindo de um contexto militar, integrou as universidades com o objetivo de alavancar a pesquisa científica, foram os grupos de discussão que conseguiram levar adiante uma série de conversas de ONGs e movimentos sociais, povoando o ciberespaço com conversas voltadas para a organização de protestos e coordenação de ações coletivas, que fizeram emergir as comunidades virtuais perante um contexto midiático cada vez mais concentrado nos oligopólios empresariais (Antoun & Malini, 2013).
Se nos anos 1990, os EUA alavancaram a disseminação da Internet com a sua Supervia da Informação, com o objetivo de expandir o comércio eletrônico e transformar o mundo em um grande mercado consumidor unificado, diminuindo as distâncias entre a oferta e a demanda. O uso criativo das ferramentas de comunicação foi capaz de produzir uma solidariedade global ao movimento zapatista e os enxames das manifestação anti-globalização. A Web foi capaz de reunir na homepage o que estava disperso nas listas de discussão e conectar diretamente iniciativas distantes e sequer conhecidas entre si.
Se na virada do milênio, a bolha "pontocom" implodiu o sonho do comércio eletrônico global e fez emergir uma indústria da intermediação, que se apropria das relações ponto a ponto para gerar valor; a inteligência coletiva e conectada do ciberespaço já tinha inventado a atualização dinâmicas dos blogs, formas de compartilhamento de arquivos cada vez mais eficientes e maneiras de publicar e gerir as informações autonomamente. A chamada web 2.0 insere no contexto socioeconômico a participação e a instantaneidade das interações se tornando uma máquina distribuída de mobilização de afetos e de produção de crenças e desejos. As redes sociais surgem como meios facilitadores das relações entre indivíduos. A mineração de dados se torna a ferramenta básica de extração de valor dessas relações. A emergência de Google, Facebook e Twitter como atores centrais nesse novo momento da Internet nos dá os indícios para compreender como a relação entre pares ganha centralidade em relação ao conteúdo. Nesse contexto, mais do que mensagens, é a relação entre nós por onde estas circulam, as análises de seus padrões de repetição, e as interações entre atores distintos sobre seu conteúdo que importam. As ferramentas de redes sociais são cada vez mais um meio genérico do cotidiano, para mediar as mais diferentes relações sociais .
É por isso que a emergência destes movimentos é possível: ela se dá no conjunto das mais variadas relações em rede (NUNES, 2014). A partir das experiências das revoltas em rede que ocorreram no Brasil e na Espanha pretendemos identificar as diferenças e singularidades deste fenômenos que ocorrem em contextos distintos. Na Espanha, por exemplo, a crise financeira europeia, altas taxas de desemprego, as remoções de casas, o ajuste fiscal e a precarização de serviços públicos, criam condições de possibilidade para a organização dos afetos em torno de uma crítica ao modelo de democracia vigente. “Democracia Real Já”, gritam os espanhóis nas redes e nas ruas, identificando prontamente uma crise de representação dos partidos como ponto de partida para a invenção de novos processos sócio-políticos.
No Brasil, a violência de um crescimento econômico em muitos momentos desigual, a aproximação de um mega evento como a Copa do Mundo que produziu expectativas e desilusões no contexto urbano das grande metrópoles e uma violência policial institucionalizada, fizeram emergir os protestos que tomaram as ruas em junho de 2013. Existem muitas diferenças entre esses dois contextos, já que acontecem em conjunturas distintas. Mas o que queremos destacar, é em primeiro lugar, a capacidade de se influenciarem mutuamente, ao ponto de todos estes fenômenos poderem ser denominados como “revoltas globais conectadas” - mesmo que sejam respostas a situações locais, diferentemente do ciclo de lutas do final dos anos 90, onde as demandas eram voltadas para uma crítica aos organismos multilaterais e ao processo de globalização como um todo.
Em comum, a gênesis e explosão destas revoltas passam pela respostas a determinados eventos, e se materializam na capacidade tecnopolítica de se relacionar quase que instantaneamente com determinados acontecimentos. Em outras palavras, a invenção de práticas de produção de narrativas de forma coletiva e distribuída permitem recriar as interpretações dos fatos, permitem criar e influenciar a mobilização de corpos e mentes diante de determinadas situações, produzindo ruídos no campo da comunicação e na sua relação com os fenômenos sociais. Pois, obviamente, não se pode subestimar a capacidade dos meios massivos de fazer o mesmo: mobilizar afetos e criar mundos. No Brasil esta complexidade pode ser identificada na apropriação por parte da mídia dos protestos, nas tentativas de direcionamento da demandas, no jogo das imagens para a criminalização do anonimato. A capacidade de mobilização da mídia de massa unidirecional no contexto das NTIC, parece se efetivar muito mais na capacidade de sincronizar e determinar uma agenda (MCCOMBS, 2006), ou seja, na capacidade de determinar em “o que” pensar muito mais do que “como” pensar. (Candòn, 2013). Da mesma forma, experiências de manipulação de emoções através do Facebook apontam para a capacidade de modulação afetiva das redes sociais. Fica claro, portanto, a necessidade de aprofundar a pesquisa em como movimentos em rede podem contrapor o poder midiático de grandes corporações e criar uma agenda autônoma de mobilização do pensamento.
Na Espanha, amplos setores da sociedade se mobilizaram em torno do 15-M como resposta a crise econômica e políticas de ajuste fiscal. O 15-M, não surgiu espontaneamente, mas foi o resultado de uma série de outros eventos e mobilizações antecedentes. Também não terminou ali, mas vêm produzindo uma série de ações e intervenções coletivas como assembleias, oficinas, movimentos pós-sindicais, organizações em defesa da população ameaçada de despejo, entre outras ações.
Toret e o grupo Dataanalysis15M (2013) , no trabalho “Tecnopolítica: la potencia de las multitudes conectadas”, narram o processo de emergência do 15-M como fenômeno político. Uma das principais conclusões deste estudo é o caráter extremamente afetivo das interações. Através das análises de rede e das construções semânticas das mensagens na rede social Twitter, constatou-se que os tweets relacionados ao 15-M possuíam o dobro da carga emocional de uma mensagem comum e isso lhes dava um poder de viralização maior. Através de uma interface online é possível ver os afetos envolvidos como empoderamento, medo, indignação, felicidade e tristeza no decorrer dos acontecimentos.
Este fato nos permite fazer uma associação do afeto aos modos de organização, emergência e transformação dos sistemas-rede de manifestações como o 15-M na Espanha e de Junho de 2013 no Brasil. São movimentos que surgem por contágio emocional a partir de determinados eventos que disparam determinadas propagações afetivas entre as camadas de interação. Essa dimensão rompe de uma maneira abrupta com o modelo clássico de movimento social apoiado em convocações, ideologias e afiliações partidárias ou sindicais.
Essa ruptura porém, não é capaz por si só de dar uma forma e um nome, mesmo que provisório a estas conexões. É necessário uma sincronização afetiva entre corpos e cérebros. É aí que entra a capacidade tecnopolítica da multidão de indivíduos conectados pelas tecnologias da informação. A individuação de um evento como o 15-M ou como o junho de 2013 no Brasil se desenvolve no “uso tático e estratégico de ferramentas digitais para organização e auto-modulação da ação coletiva” (Idem). Uma capacidade que se traduz no campo performático para produzir eventos, e de se adaptar e se modificar a partir ou em função destes.
Nos parece também importante saber que efeitos e inovações democráticas estes movimentos são capazes de produzir após determinados períodos de resfriamento. Gutierrez (2014) cita as micro-utopias que o 15-M foi capaz de produzir, entre eles: as ferramentas de hibridização de processos analógicos e digitais, novos grupos de comunicação, ferramentas de participação social e inteligência coletiva, experiências de um pós sindicalismo em rede a partir do fenômeno da Mareas Ciuidadanas. No Brasil, a criação de novos coletivos de mídia, as greves independentes de sindicatos de garis, professores, rodoviários entre outras categorias sugerem a invenção de um pós-sindicalismo similar.
Na Espanha o contexto eleitoral da democracia representativa também parece efetivar novos atores políticos. O Podemos, um dos partidos surgidos no rastro das manifestações elegeu 5 eurodeputados na últimas eleições e cresce nas pesquisas para a próxima eleição espanhola. Mas uma outra experiência, o Partido X, apesar de não ter eleito ninguém, merece destaque devido a sua auto denominação como um “Não Partido” e por seus métodos de participação política e de elaboração de programas de governo em rede. Um não-partido que reivindica a política participativa e o copyleft como principio, inventando a ideia de um partido como um sistema operacional de código aberto, que abre a construção de suas práticas e oferece seus métodos para serem copiados e modificados.
A associação destes processos ao código aberto e à cultura hacker põe em jogo os conceitos de criação de um Comum Biopolítico (Negri & Hardt, 2009) no contexto dos movimentos em rede contemporâneos.
É fundamental, portanto, observar os efeitos em torno da invenção de novos métodos para transformação da democracia e da representação: quais são as invenções, as novas relações, os novos modos de ver e dizer que se produzem, e em resumo, eles se produzem mesmo? Isto porque nos parece necessário instigar uma problematização que identifique as diferenças entre uma máquina de propagação de crenças e desejos da publicidade, da mídia de massa, dos Estados-Corporações e suas técnicas de agenda-setting; e esta maquina da multidão que se propõe a criar outros afetos e invenções. Seriam elas iguais buscando objetivos diferentes? Ou a primeira pré-determina e modula continuamente seus efeitos e a última se abre inequivocamente para a criação de novos mundos possíveis? É possível opor nesse contexto uma maquinismo vivo e autopoiético à máquinas de repetição vazias?

Palavras-chave: democracia, internet, movimentos sociais, redes.