Regimes de visibilidade da diferença: vigilância? Biossociabilidade?

#27

Tânia Márcia Cezar Hoff

Neste artigo, elegemos como tema a constituição dos regimes de visibilidade na comunicação publicitária brasileira produzida e veiculada nos anos 2000-2010, período caracterizado pela intensificação da(s) cultura(s) do consumo no Brasil. Na perspectiva das estratégias de produção midiática, investigamos como se constituem os regimes de visibilidade da diferença na comunicação publicitária brasileira contemporânea, articulados ao fenômeno do consumo e à noção de biossociabilidade. Para tanto, analisamos os modos de produção dos regimes de visibilidade na comunicação publicitária, à luz da noção de biossociabilidade, identificando as estratégias de produção de visibilidade da diferença em imagens de “corpo diferente”, isto é, o corpo fora do padrão de beleza, de saúde, de juventude e de normalidade predominantes na publicidade brasileira no mencionado período. E buscamos problematizar o fenômeno do consumo, tendo a noção de biossociabilidade como condução teórica para refletir a respeito do gênero discursivo publicitário e da gestão de si no capitalismo tardio.
Assim, o artigo está fundamentado nos estudos de comunicação e consumo, associados aos estudos dos escritos de Foucault e de alguns estudiosos de seu pensamento para refletir sobre a noção de biossociabilidade, a partir do entendimento da biopolítica nos processos de intensificação das culturas do consumo, quando a vigilância emerge como aspecto relevante do cuidado de si.
Para as análises a respeito da diferença/diversidade, dialogamos com o pensamento de um grupo de estudiosos, tais como: Foucault, Deleuze e Canclini. Também alguns autores dos Estudos Pós-coloniais, que realizam uma análise-crítica das teorizações sobre diferença, bem como Nancy Fraser, que discute a ideia do reconhecimento na ordem mundial globalizada e multicultural. Quanto à inter-relação diferença e corporeidade, fundamentamos nossas reflexões num conjunto de estudos do corpo, notadamente aqueles que abordam o corpo como produção sociocultural: dentre eles, Foucault, Courtine e Ortega, além de pesquisadores latino-americanos e brasileiros que discorrem sobre corporeidade, em perspectiva sociocultural e político-econômica que nos caracterizam enquanto sociedade.
Quanto ao referencial teórico sobre regimes de visibilidade e vigilância, além de Foucault, baseamo-nos principalmente em estudos sobre a cultura da imagem, dialogando com pesquisadores como Aidar Prado, Alberto Klein, Fernanda Bruno, Paula Síbilia, Norval Baitello e Rose de Melo Rocha, dentre outros.
Deste modo, nossa análise dos regimes de visibilidade volta-se para as estratégias de construção de sentido e de visualidades/imagens no cenário midiático do capitalismo globalizado associado às culturas de consumo, dai a relevância, a nosso ver, de se desenvolver uma análise da publicidade como um sistema de circulação de discursos/sentidos, promovidos pela circulação de imagens, que pode refletir e refratar biossociabilidade(s), conforme entendimento de Francisco Ortega, em O corpo Incerto (2008).
O objeto empírico a ser investigado é a comunicação publicitária brasileira contemporânea, em especial os seus regimes de visibilidade da diferença, a partir de um corpus formado por campanhas e peças publicitárias que apresentem imagens de corpo fora do padrão frequentemente divulgado pela publicidade, o que denominamos “corpo diferente”. A categoria “corpo diferente” designa outras corporeidades, ou seja, o corpo idoso, deformado, obeso, portador de deficiência física ou mental, doente – anoréxico, aidético etc. – e também o corpo da diferença étnica. O corpo diferente se constitui como o “outro” que se distingue do modelo de estéticas corporais hegemônicas que a comunicação publicitária veicula e implica o que poderíamos chamar de “enunciação publicitária do outro”.
Se o corpo é uma experiência da qual o sujeito não pode apartar-se, posto não haver existência sem corpo, somos instados a analisá-lo como um lócus de atravessamentos de naturezas diversas, conforme Courtine, em História do corpo 3. As mutações do olhar. O século XX (2008), abrem-se, deste modo, inúmeros caminhos para os estudos do corpo ao longo do referido século, em especial aqueles do campo da comunicação, quanto aos seus regimes de visibilidade. Nos anos 1960 e 1970, no âmbito das Ciências Sociais, iniciam-se as teorizações sobre a diferença associada à corporeidade numa dimensão sociopolítica: o corpo torna-se lócus de vigilância.
No âmbito da cultura midiática, nas últimas décadas do século passado, a mídia o acolhe e promove sua estetização, isto é, a proliferação de imagens de corpo que significam enquanto imagem, distanciadas do referente, e que, devido ao excesso de exposição, superficializam-no. Tal situação se manifesta de modo exemplar na cultura do consumo, a partir dos processos de intensificação das práticas de consumo e dos os processos de midiatização da sociedade, quando os cuidados com o corpo e a relevância atribuída à imagem emergem como alicerce dos processos de individuação, tão associados ao fenômeno do consumo.
Neste cenário contemporâneo de midiatização e de intensificação do fenômeno do consumo no Brasil, a comunicação publicitária tem promovido deslocamentos nos seus regimes de visibilidade, apropriando-se de temas que estão no cerne da formação sociocultural brasileira e que permaneceram, em maior ou menor grau, pouco visíveis na esfera midiática. Emergem, na criação publicitária – campanhas e peças – do período que propomos analisar, imagens de corpos diferentes, seguindo uma tendência observada desde a segunda metade da década de 1990, de explicitar a diversidade social por meio de características físicas como tom de pele e tipo de cabelo. Assim, em 2003, a marca Boticário lançou a linha de maquiagem “Bronze Brasil” para peles morenas, cuja campanha traz imagens de modelos explicitando diferenças étnicas na cor da pele – a do índio, do negro, dentre outros grupos étnicos que participam da formação da sociedade brasileira. Trata-se de exemplo significativo, pois revela a preocupação da empresa em produzir uma maquiagem adequada ao tom de pele do brasileiro, abordando de modo eufórico os elementos multiculturais da sociedade e do homem brasileiro. Outros exemplos relevantes são campanhas que têm como modelo pessoas idosas, obesas, doentes – anoréxicas, aidéticas etc – e portadoras de deficiências físicas ou mentais: as campanha do sabonete Dove e da Associação Desportiva para Deficientes – ADD, dentre outras, sinalizam deslocamentos nos regimes de visibilidade da diferença, e evidenciam a relevância de se estudar as transformações discursivas sobre a diferença na comunicação publicitária.
Considerando as lógicas de produção dos regimes de visibilidade da diferença na cultura midiática, a emergência da diferença em imagens de corpo fora do padrão de beleza, saúde, juventude e normalidade nos instiga a pensar a publicidade em relação às culturas do consumo e, nesta perspectiva, a ter como guia a noção de biossociabilidade e a definir a seguinte questão para ser investigada no artigo: considerando a intensificação do fenômeno do consumo e as decorrentes transformações das subjetividades e das sociabilidades na sociedade brasileira, os regimes de visibilidade do discurso publicitário podem ser entendidos como vigilância ou como biossociabilidade(s) da contemporânea sociedade do consumo?

Palavras-chave: visibilidade, vigilância, biossociabilidade, sociedade.