Sistemas de vigilância em processos fotográficos híbridos

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Adriel Martins Visoto

O presente resumo, destinado ao III Simpósio LAVITS – Vigilância, Tecnopolíticas e Territórios, realizado pela Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade, se refere a uma proposta de trabalho que visa a apresentação, reflexão técnica, processual, e conceitual acerca das séries de fotografias ''Reality Show (Me)'' e ''O quarto de Narciso'', pertencentes a um conjunto de obras que vem sendo produzidas em minha pesquisa de mestrado, intitulada provisoriamente de “Poéticas Invasivas – O Voyeurismo Na Fotografia Contemporânea”, desenvolvida na linha de pesquisa de Poéticas Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com financiamento da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), tendo início em julho de 2013, de forma que ainda encontra-se em processo.
A apresentação como um todo, prevê a exposição de trabalhos fotográficos que tem como princípio gerador a captura de fotos íntimas por meio de equipamentos de vigilância cctv e espelhos convexos, deslocando-os do território público da paisagem urbana e os instalando no ambiente privado, doméstico e afetivo do lar.
É importante esclarecer que embora se trate de uma pesquisa em fotografia, parto de uma noção expandida2 desta, me apropriando de outras linguagens artísticas e veículos de comunicação, como o cinema, a televisão, a literatura e a performance, as incorporando ao processo de construção das obras e ao discurso que as acompanha. Acredito ser fundamental na atualidade, o entendimento da fotografia através de seu diálogo com outras linguagens e disciplinas, pois somente assim, o discurso crítico poderá acompanhar o caráter interdisciplinar dos trabalhos que vem sendo produzido pelos artistas contemporâneos que elegem a câmera como uma de suas principais ferramentas de criação.
Para a construção das obras em questão, foram utilizados dois tipos diferentes de dispositivos que compartilham no fundo a mesma função, a da vigilância. Um deles consiste num sistema óptico, composto por espelhos circulares convexos, sendo estes fixados no canto superior das paredes internas de minha própria residência, refletindo de um ângulo panorâmico os ambientes da casa e as ações ocorridas no mesmo. Para que este reflexo seja capturado e possa se materializar em forma de imagem, uma câmera fotográfica encontra-se posicionada sobre um tripé, situado no canto oposto ao espelho, sendo alguns disparos aleatórios realizados ao longo do dia, entre atividades domésticas e cotidianas. O outro dispositivo, embora também possua em sua constituição certos mecanismos ópticos, é um sistema essencialmente eletrônico, um sistema de vigilância cctv, responsável por uma constante vigia do espaço, o captando igualmente em ângulos panorâmicos (devido a sua instalação no teto), sendo os frames capturados e armazenados em formas de arquivos fotográficos. Dessa forma, me proponho a colecionar imagens particulares de meus rituais cotidianos, as reorganizando em forma de diários visuais permeados por uma narrativa que se situa no limiar entre a realidade e a ficção. Onde a precariedade técnica das imagens geradas por esse tipo de equipamento são incorporadas ao trabalho, nos remetendo diretamente a esses dispositivos, que anunciam o olho eletrônico e a onipresença desse olhar por onde nada passa despercebido.
Devido ao enorme contingente de imagens geradas neste processo de captura, muitas são descartadas durante a seleção e edição deste material, onde busco por meio daquelas selecionadas estabelecer um seqüência que não corresponde necessariamente a ordem dos acontecimentos ocorridos, dando lugar a uma narrativa que se configura em certa medida como um relato ficcional, mas que carrega em seu interior uma fidelidade autobiográfica. Trata-se de uma maneira alegórica, idealizada e metafórica de representação de si e da realidade. Características que se tornaram recorrentes no cinema, nas artes visuais, na TV e no teatro, mas que foram concebidas e entendidas dessa forma através da literatura inicialmente, sob um gênero identificado em Doubrovsky como auto-ficção, onde o romance ficcional é construído com base em acontecimentos reais e autobiográficos. Em ''O pacto-autobiográfico'', Philippe Lejeune irá sistematizar um pensamento sobre essa produção por meio de uma análise de textos que carregam esse caráter confessional, retomando o surgimento do gênero e demonstrando seus desdobramentos sucessivos até a contemporaneidade, sendo a escrita de si cada vez mais recorrente nos ambientes virtuais dos blogs e das redes sociais, funcionando também como forma de exposição de dados pessoais que se tornam vulneráveis aos olhos das diversas e liquefeitas formas de vigilância.
Há de se levar em conta também uma relação com outro gênero bastante evidente nos trabalhos introduzidos, sendo esse essencialmente televisivo (mesmo que tenha se desdobrado em outras mídias e plataformas), que é o do reality show, surgidos em meados da década de setenta e se popularizando de fato no final dos anos noventa com o surgimento do Big Brother. No programa que se propagou por emissoras de todo o globo, os participantes confinados em uma casa por cerca de dois meses, competiam em um conjunto de provas eliminatórias por um prêmio de representativa quantia em dinheiro, sendo filmados constantemente através das câmeras de vigilância, dos espelhos falsos, e dos espaços confessionários. Suzana Kilpp, irá apontar uma série de questões que emergem deste modelo ao se dedicar à uma análise interdisciplinar do gênero televisivo, sendo que para ela, o voyeurismo, a vigilância e a transparência, se constituem como as principais propriedades enunciativas do gênero.
Não é necessário, no entanto recorrer ao Big Brother para que possamos enxergar e acessar nos trabalhos algumas camadas de significado referentes a superexposição e a espetacularização da intimidade. Qualquer habitante de uma cidade que possua o menor índice de urbanização possível, pode experimentar a sensação de ter sua intimidade ameaçada, sendo sua conduta controlada e medida ao ser gravado constantemente e em tempo real. Todos partilhamos da consciência de que atualmente somos filmados incessantemente pelas câmeras de vigilância que se espalham por toda a paisagem urbana, adentram as instituições, invadem os estabelecimentos e até mesmo o espaço doméstico. O que parecia utópico no romance 1984 de George Orwell, em que os sujeitos são vigiados constantemente por um governo totalitário que tem como líder o ''grande irmão'', torna-se cada dia mais real e assustador.
Poderíamos recorrer ao diagrama do Panóptico de Jeremy Bentham para entendermos a base do conceito de vigilância, bem como retomar a teoria foucaultiana ao fazê-lo, mas assim como defendem Bauman e Lyon, penso que esse caminho se tornou um tanto quanto replicado e óbvio para os pesquisadores que pretendem estudar a vigilância em qualquer de suas abordagens ou vertentes.
Nesse sentido, me interessa pensar a vigilância e suas implicações a partir do conceito denominado por Bauman de ''Vigilância Líquida'', que se refere a uma rede mais complexa e rizomática, se diferindo do diagrama Panóptico onde a função da vigilância encontra-se centralizada.
Na contemporaneidade, a vigilância, suas funções, seus dispositivos, e até mesmo suas propriedades estéticas, deixam de ser um tema de interesse apenas para teóricos ligados a sociologia e antropologia e se entendem para aqueles pesquisadores da comunicação, da cultura visual, e da arte. Arlindo Machado, Cosuelo Lins, Fernanda Bruno, e Sandra Phillips, são alguns dos autores que se dedicaram a pesquisas que abordam obras de artistas e cineastas contemporâneos como Michel Klier, Win Wenders, Fritz Lang, Caetano Dias, Bruce Nawman, Jill Magid, Laurie Longe, Sophie Calle, entre outros, em que questões em torno da vigilância se encontram presentes, sendo possível tecer relações com minha produção, bem como perceber diferentes modos de solução formal e de exposição destas obras.
Todo o material teórico e artístico esboçado neste resumo, busca apresentar como algumas referências vão se aderindo e se justapondo ao processo de construção das obras ''O espelho de Narciso'' e ''Reality Show (Me)'', constituindo suas camadas de sentido e significado. Procuro demonstrar como a apropriação dos dispositivos de vigilância devem ser feitas de forma consciente, entendendo-se as implicações intrínsecas a sua lógica de funcionamento e atuação. Acredito que os trabalhos buscam refletir de um modo até mesmo irônico, sobre a forma como nos encontramos imersos e afogados nas águas desta vigilância cada vez mais fluida e líquida, nos permitindo olhar para ela de forma mais crítica e consciente.

Palavras-chave: vigilância, fotografia contemporânea, intimidade, reality show, voyeurismo.

Referências Bibliográficas:
Bauman, Z. (2013). Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
Bentham, J. (2000). O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica.
Bruno, F., & Kanashiro, M., & Firmino, R. (Orgs.). (2010). Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Editora Sulina.
Foucault, M. (1999). Vigiar e punir (20a ed.). Petrópolis: Editora Vozes.
Kilpp, S. (2010). A traição das imagens: espelhos, câmeras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios.
Lyon, D. (1995). El ojo eletrônico: El auge de la sociedad de la vigilância. Madrid: Alianza Editorial.
Lejeune, P. (2008). O pacto autobiográfico: De Rousseau à internet. Belo Horizonte, Editora UFMG.
Machado, A. (2001). Máquina e Imaginário: O desafio das Poéticas Tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Phillips, S. et al. (2010). Exposed: voyeurism, surveillance and the camera. Londres: Tate Galery Publishing.
Sontag, S. (2004). Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.