Subversão na rede: o caso da glitch art como crítica aos sistemas de vigilância no facebook

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Maiana Abi-Samara
Thereza Nardelli

A palavra glitch é usada para descrever um distúrbio, em geral temporário, que ocorre em um sistema eletrônico ou digital. Esses distúrbios podem ser causados por falhas humanas (como erros de programação em um código) ou por falhas de transmissão de dados e até mesmo distorções físicas em circuitos digitais ou hardwares. O uso do termo glitch se desenvolve a partir da necessidade de reportar erros difíceis de serem visualizados ou verificados em sistemas. Um termo sinônimo para se referir a esses erros é bug, ilustrando a situação justamente como um inseto: potencialmente incômodo porém pequeno e difícil de notar. Sistemas e códigos complexos dificilmente são lançados totalmente livres da presença de glitches, justamente devido à dificuldade de serem encontrados previamente. Por isso essas falhas vão se manifestando e sendo corrigidas à medida em que se dá o uso de um sistema, sendo erros comumente encontrados por usuários mas que não chegam a inviabilizar o uso de um dispositivo ou código. Ao contrário, os glitches são muitas vezes assimilados com alguma condenscendência, como fenômenos esperados em um sistema e muitas vezes acabam sendo apropriados pela comunidade de usuários. Esse é um caso frequente, por exemplo, na comunidade dos jogos digitais, sendo comum que glitches descobertos sejam usados como forma de burlar as regras do jogo, algumas vezes otimizando o desempenho do jogador que saiba se aproveitar deles ou mesmo sendo incorporados como obstáculos extra. As falhas também podem se manifestar na gravação e transmissão de sons, e a partir disso existe um subgênero musical de artistas que buscam propositalmente os efeitos de glitches sonoros.
O glitch demonstra em si mesmo falhas técnicas, que evidenciam a virtualidade e a técnica dos dispositivos em que são engendrados. Os efeitos visuais que os glitches proporcionam em vídeos e imagens têm sido aproveitados ou causados propositalmente e apropriados enquanto uma estética específica, configurando um estilo artístico chamado de glitch art - mas também por vezes identificado sob os termos de databending, datamoshing ou imagehacking. Essas imagens participam de uma efervescente tendência nas artes de internet, impulsionadas por plataformas de compartilhamento social que, mais recentemente, já foi abraçada em casos pontuais na moda, na publicidade e na cultura pop. No Facebook, como seria de se esperar, não é diferente, e há uma ativa e intensa comunidade que divulga, reproduz e discute glitch art, tornando-se um campo central para a observação desse movimento estético.

A estrutura do código e seus pontos de ruptura
O facebook representa, hoje, uma gigantesca plataforma de formação de comunidades ao redor de interesses diversos, viabilizando a divulgação e interação com todo tipo de temas. Representa também uma enorme base de dados pessoais e sobre interações sociais e se mostra uma companhia controversa atualmente devido ao volume de informações que detém e à sua política de privacidade e uso de tais, com polêmicos acordos para uso comercial e governamental das informações de seus milhões de usuários. Com sua estrutura rígida e restringindo o usuário a seus algoritmos obscuros de priorização de informação, o facebook é, atualmente, também uma plataforma intimamente ligada à vigilância virtual.
As páginas referentes a glitches marcam presença nessa rede social e oferecem um terreno fértil para análise da relação entre essas práticas estéticas e a estrutura do Facebook: ao invés de apenas divulgar ou hospedar diálogos sobre o assunto, o interesse por glitches se manifesta em páginas especializadas através da própria busca por brechas e falhas no código dessa plataforma.
Estaria a glitch art, por sua natureza hacker, evidenciando e subvertendo códigos de sistemas fechados, se posicionando de maneira crítica a esses sistemas de vigilância em redes sociais? - É esta pergunta que o presente artigo procura responder, através de duas etapas principais de análise. Primeiramente, fazemos uma retrospectiva histórica do uso do glitch nas artes digitais, buscando situar esta estética em um paralelo com o desenvolvimento da cultura hacker digital. Em segundo lugar, analisamos a obra e as repercussões interativas online de dois artistas de glitch art populares no Facebook, que atuam justamente na execução de glitches dentro dessa plataforma: os artistas Glitchr e Sayuri Michima, ambos ativos em fanpages da rede social. Paralelamente a esses dois objetivos do artigo, buscamos estabelecer relações entre o objeto de estudo e autores da teoria social contemporânea, como foco no caráter idiossincrático das interações sociais em rede e das práticas de vigilância na sociedade atual.

Biopolítica, vigilância, despesa e desvio: insights propostos
Entendemos que o glitch e a sua apropriação estética se tornam possíveis não apenas pelas condições técnicas de seu aparecimento, mas também por configurações sociopolíticas e culturais específicas. A partir de perspectivas que atuam na observação dessas relações [como, por exemplo, as propostas por Foucault (2010); Deleuze (1992); Negri (1993); Lazaratto (2006) & Rancière (2009)], se faz notar que nas sociedades de controle (Deleuze, 1992), a produção de imagens também é voltada para operar dispositivos estratégicos de vigilância, e são agentes em programas de governamentalidade junto a outros dados captados nas redes. As redes sociais, as webcams, o twit casting, as câmeras de segurança são apenas alguns elementos desse cenário de esvaziamento virtual e uso da imagem enquanto informação (Brasil, 2010). Nesse cenário, no qual todo cidadão pode ser um terrorista em potencial (Agamben, 2010) e onde as dinâmicas sociais são agencias por uma ameaça constante e flutuante de risco eminente (Beck, 2011), falta ainda o que Assange (2012) aponta como diretriz ética para o compartilhamento da informação: transparência para os grandes, e privacidade para os pequenos. Aqui, quase tudo é passível de observância, o controle é nomadizado e, dado esse funcionamento, parece mais útil não se abster dos meios observados mas, ao contrário, agir a partir deles – observando as “novas possibilidades de reversão vital” (Pelbart, 2002). Talvez o nômade (Pelbart, 2002), esquiso (Deleuze-Guatarri, in Pelbart, 2002), seja uma boa metáfora para o artista hacker: “ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha [...] por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes” (Pelbart, 2002). A transgressão presente no glitch, retirando o código se seu aspecto funcional e tornando-o improdutivo para os fins que foram designados, pode conferir também uma relação com o excesso e com a despesa (Bataille, 1975) na medida em que dispensa uma lógica motivada para finalidades, que atua a favor do capital - a mesma lógica do trabalho que situa os objetos no campo da utilidade: gasto improdutivo que adquire caráter de insubordinação aos sistemas de interditos, atuando a partir de dentro da vida social e subjetiva.

Palavras-chave: glitch art, vigilância, rede, movimento, Facebook.