A máquina de exploração da privacidade e suas conexões sociais

#109

Rafael de Almeida Evangelista
Miguel Said Vieira

Em junho de 2013, as revelações de Edward Snowden deixaram a comunidade internacional em choque: até mesmo alertas frequentemente descartados como paranoia conspiratória mostravam-se moderados diante do alcance do esquema de vigilância que os documentos vazados indicavam. As denúncias de Snowden, baseadas numa enorme quantidade de documentos internos da National Security Agency (uma agência de inteligência estadunidense onde ele trabalhara), demonstravam que um conjunto de países liderado pelos Estados Unidos da América (EUA) havia montado um aparato estatal de vigilância enorme e extremamente sofisticado.
A revelação desse esquema conjurou preocupações sobre os riscos de totalitarismo estatal, em seus variados graus e formas. Ao redor do mundo, muitas feridas ainda abertas dão razão para esse temor em relação aos aparatos de vigilância estatal e patrulha ideológica: Operação Condor, Stasi e KGB são apenas alguns dos muitos símbolos traumáticos desses riscos, que marcaram presença em ambos os lados das antigas fronteiras da Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim e os processos de “redemocratização” na América Latina não cicatrizaram essas chagas institucionais: o fato de que o aparato brasileiro de inteligência prossegue vigiando e infiltrando manifestações políticas e movimentos sociais exemplifica isso de forma clara.
O vigor dessas revelações iluminou majoritariamente, porém, um tipo específico de vigilância: a vigilância estatal. Embora o capital (produtivo e financeiro) esteja constantemente buscando cooptar e estabelecer conluios com os aparatos estatais e a classe política — de forma que a fronteira entre o econômico e o político seja com frequência tênue —, é evidente que a vigilância exposta nessas revelações tinha como ator central o Estado, e tinha motivações mais próximas da política do que da economia. 1 Porém, ganhou pouca ênfase no debate público o fato de a estrutura utilizada pelos Estados ser majoritariamente privada. Os dados coletados por agências como a NSA na maioria das vezes não foram capturados por ela, mas por grandes empresas de tecnologia como a Google e a Microsoft.
A vigilância estatal não é o único tipo a que estamos corriqueiramente expostos hoje. Há um amplo espectro de mecanismos e práticas de vigilância que são operadas por outros atores, sob uma lógica distinta: a vigilância que aqui denominaremos de mercantil. Ela materializa-se nos mecanismos cada vez mais sofisticados e abrangentes de publicidade online comportamental (incluindo os mecanismos de coleta de dados que a alimentam) e atravessa hoje uma boa parte de toda troca de informações realizada pelo globo.
A vigilância mercantil não é uma novidade absoluta: todo o marketing direcionado sempre dependeu de vigilância similar em algum grau. No entanto, a consolidação da publicidade como principal modelo de custeio dos negócios ligados à internet, e a tremenda popularização e barateamento do acesso à internet e dos smartphones, posteriormente, são dois fatores que multiplicaram o potencial de aplicação desse tipo de vigilância.
Da perspectiva do primeiro desses fatores, existe uma grande demanda — tanto da parte de anunciantes, como da parte dos detentores de sites de grande acesso na internet — por uma publicidade lucrativa, que alie eficiência e baixo custo. Da perspectiva do segundo fator, sites e aplicativos de smartphones são espaços publicitários com características novas em relação às mídias analógicas: por um lado, eles são comparativamente abundantes (sua quantidade não é limitada pelas concessões estatais ou pela largura do espectro, como no caso dos canais de televisão)2 e customizáveis (a baixo custo adicional, podem exibir anúncios diferentes para cada membro da audiência); e por outro lado, as tecnologias utilizadas na internet e em smartphones permitem que todo o comportamento de sua audiência seja registrado e equacionado visando aumentar a eficiência dessa publicidade.
Há, sem dúvida, pontos de contato e similaridades entre os dois tipos de vigilância. As revelações de Snowden mostraram que a vigilância estatal “aprendeu” com a vigilância mercantil: em vez de tentar selecionar a priori os dados relevantes, ela passou a acumular uma enorme quantidade de dados, para “domá-los” a posteriori, com a ajuda de uma grande infraestrutura computacional (de busca e armazenamento) — estratégia similar à que conduziu o Google à primazia no setor de busca. E num sentido mais abstrato, os dois tipos de vigilância têm uma similaridade conceitual: ambas visam conhecer, acompanhar e acumular dados sobre sujeitos, para tentar exercer algum grau de controle sobre eles.
Mas dessa perspectiva conceitual, também já podemos vislumbrar uma diferença profunda entre a lógica que rege esses dois tipos de vigilância. Na vigilância estatal, o que se busca é o controle do sujeito enquanto agente político; na vigilância mercantil, visa-se obter dados dos sujeitos enquanto agentes econômicos — principalmente enquanto um agente de consumo. Nesta última, inclusive, em diversos momentos os dados obtidos nem precisam referenciar aos indivíduos especificamente, importam enquanto informação sobre grupos demográficos e culturais.
O intuito limite dessa vigilância é facilitar e multiplicar a troca de mercadorias: por um lado, as mercadorias anunciadas pela publicidade online; mas por outro lado, também a própria publicidade online enquanto mercadoria: a audiência de aplicativos e sites torna-se um produto, que é vendido a anunciantes por Google, Facebook e afins. O que dá valor a essa “audiência-produto” é a vigilância: é ela que permite construir perfis ricamente detalhados dos membros dessa audiência, e sem ela não seria possível exibir anúncios profundamente customizados (variando de acordo com o membro da audiência, o dispositivo que ele utiliza, o local em que ele se encontra, o seu comportamento de navegação etc.
E essa singularidade da lógica mercantil de vigilância nos traz de volta às revelações de Snowden. O fato de que elas centraram-se na vigilância estatal tem duas consequências. Em primeiro lugar, sugere à opinião pública que o ator central da vigilância é o Estado, e que o tipo de vigilância mais corriqueiro e abrangente é a vigilância estatal. Em segundo lugar, sugere que os critérios éticos adequados para pensar a vigilância são aqueles que se aplicam à vigilância estatal.
Ocorre, porém, que muitas vezes esses critérios não são suficientes para equacionar os dilemas e riscos envolvidos com a vigilância de tipo mercantil. Vejamos na prática essa limitação.
A vigilância estatal com frequência está associada a uma perseguição individualizada: o aparato de espionagem tenta localizar aqueles indivíduos específicos que divergem ideologicamente do establishment, ou que buscam agir para subvertê-lo: o “terrorista”, o “subversivo”, o “manifestante”. A vigilância possibilita ao Estado identificar esses indivíduos, e logo desacreditá-los, prendê-los, torturá-los etc. O aspecto individual dessa identificação é central; não basta, ao estado, saber que há um grupo de indivíduos que são subversivos: é necessário saber quais são seus nomes e endereços; é necessário poder identificar seus corpos (por meio de uma foto ou uma impressão digital, por exemplo); é necessário que agentes do estado perscrutem os hábitos e comportamentos privados desses indivíduos (para saber como eles podem ser chantageados, por exemplo). Para nos opormos eticamente a esse tipo de vigilância, uma noção de privacidade como direito individual é fundamental.
No entanto, essa noção individual de privacidade pode ser insuficiente para problematizar a vigilância mercantil. Esse tipo de vigilância pode operar normalmente sem que seja necessário identificar precisamente um indivíduo (saber seu nome, seu endereço), e sem que esses dados de identificação sejam manipulados por sujeitos: nenhum funcionário do Google fica sabendo que determinado usuário é homossexual, por exemplo, mas essa informação pode ser processada indiretamente pelos algoritmos do Google, e utilizada para vender anúncios direcionados a esse público. Ora, a privacidade individual desses usuários talvez não esteja sendo violada; no entanto, enquanto sociedade, estamos aceitando que as esferas privadas de nossa vida sejam perscrutadas com uma finalidade comercial; e a manipulação de todos esses dados privados de nossas vidas faz com que atores como Google sejam capazes de nos expor a uma publicidade profundamente direcionada. E, nesse processo, é capaz de extrair valor tanto de nossas interações pela rede como na venda de produtos direcionados.
Se antes éramos expostos a muita publicidade que não nos “afetava”, agora somos bombardeados por imagens que se aproximam cada vez mais dos nossos desejos; e evidentemente, não somos capazes de adquirir todos esses objetos de desejo. A violação mercantil de nossa privacidade gera, num âmbito social, a frustração e a neurose; e um enorme desequilíbrio de poder entre os poucos atores que são capazes de manejar esses dados e o restante da sociedade. Assim, só é possível problematizar as consequências negativas dessa vigilância mercantil se concebermos uma noção social de privacidade, complementar à privacidade de âmbito individual.
Exemplos de como essas fronteiras são fluidas e tênues são a vigilância à Petrobras (que, simbolicamente, é uma empresa de capital misto), e a vigilância ao sistema SWIFT (que processa transações financeiras internacionais — e contém informações que poderiam servir tanto à “caça ao terrorismo”, como ao favorecimento de atores empresariais estadunidenses); ambas reveladas por Snowden.
Não se trata de uma abundância absoluta: a existência de um novo aplicativo ou site pode ser dificultada ou facilitada por gatekeepers como o Google — que determinam quais aplicativos permitirão em suas lojas, ou favorecem determinados tipos de sites por meio de seus algoritmos de busca. No entanto, o Google é exemplo de como esse tipo de controle pode coexistir com uma lógica comercial pautada pela abundância (de aplicativos e de sites).
E já também, em certa medida, enquanto agente “produtivo”; ou mais precisamente, enquanto agente de valorização do capital. Referimo-nos, aqui, àquelas circunstâncias em que a vigilância mercantil não é feita com fins publicitários diretos (isto é, para convencer consumidores a comprar um produto específico), mas com o intuito de valorizar uma produção futura, por meio do branding, da pesquisa de mercado etc.

Palavras-chave: privacidade, vigilância, Snowden, internet.