Comunicação, vigilância e controle no mundo do trabalho: empresas e poder econômico como cerceadores da liberdade de expressão e do direito à informação

#46

Roseli Figaro
Claudia Nonato (doutoranda), Laila de Albuquerque Moraes (bolsista IC)

Este artigo tem por objetivo apresentar os aspectos teóricos e metodológicos de pesquisa homônima que vem sendo realizada por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA-USP. O estudo pretende mapear e analisar os procedimentos técnicos e administrativos de empresas privadas para monitorar, vigiar e controlar as relações de comunicação no mundo do trabalho, sobretudo, por meio das mídias sociais. O mapeamento está sendo realizado a partir da análise dos Manuais de conduta de empresas privadas e, posteriormente, a pesquisa aplicará o procedimento da entrevista com profissionais responsáveis pela gestão e aplicação desses Manuais de conduta nas mesmas organizações.
Esse estudo se justifica porque temos nos deparado com uma série de mecanismos possíveis para cercear e controlar a comunicação entre as pessoas e entre as pessoas e as instituições. São softwares, algoritmos e novas profissões que perseguem os rastros dos cidadãos na Internet, tornando-os potenciais consumidores, ídolos ou personagens perigosos. Sobretudo as empresas, no afã de defender sua imagem, otimizar processos e tempos de trabalho, bem como conquistar novos consumidores, têm adotado esses programas e contratado profissionais para o trabalho de monitoramento da comunicação interna e externa à corporação. As empresas mais prudentes têm adotado procedimentos para dar ciência a seus funcionários da existência de um Manual de conduta, de regras de comportamento comunicacional a serem seguidas, avisando-os e orientando-os sobre a vigilância. Mesmo essas, têm adotado a prática de invadir mensagens particulares, em endereços eletrônicos particulares, para ‘garantir’ o direito delas à ‘boa’ imagem. Outras ainda cerceiam o acesso a determinados conteúdos, imputando-os previamente como não adequados à imagem da empresa.
Interessa-nos entender como se dão as práticas profissionais em torno dessa questão: como os profissionais são treinados para aplicar as regras dos Manuais? como avaliam o que é pertinente e o que não é? e o que cortar, riscar, apagar?, bem como quais têm sido as punições aos empregados ‘descumpridores’ das normas de bom comportamento da empresa?
Essa pesquisa é de base empírica, visto que se estuda uma amostra de Manuais de conduta disponíveis nas redes sociais de empresas, bem como serão entrevistados profissionais que ocupam funções de controle e monitoramento das redes sociais nessas empresas. Dos profissionais encarregados de acompanhar o cumprimento dos Manuais de conduta pretende-se saber como é organizado o trabalho de monitoramento do comportamento dos empregados nas redes sociais? Quais as lógicas do processo produtivo desse monitoramento? Quais os filtros, as palavras-chave, os softwares mais utilizados?
No século XX, até a Constituição cidadã de 1988, a censura foi uma instituição balizada pelo Estado brasileiro, organizada como repartição pública, instalada em secretaria de estado de segurança púbica. Hoje essa estrutura não mais existe. As formas de controle da produção cultural e comunicacional tomaram outros caminhos. O Estado é chamado por parcela da sociedade a regulamentar critérios para a classificação indicativa de entretenimento e conteúdos audiovisuais. O Ministério da Educação é convocado a retirar de suas listas de publicações, a serem adotados por escolas públicas, títulos que façam qualquer menção que possam ser considerados como ‘preconceito’ ou ‘prejudicial à formação de crianças e jovens’. As empresas adotam formas de monitorar, vigiar, invadir e controlar a navegação na internet por seus empregados. Essas formas contemporâneas de controle guardam alguma semelhança com aquelas utilizadas pelos censores no século XX, no Brasil? Será precipitado e exagero considerar as formas contemporâneas de controle como censura?
As possibilidades e as formas de comunicação e produção de conteúdo cultural hoje não estão restritas às empresas de comunicação, ao negócio da comunicação e nem mesmo aos artistas profissionais. Todo o cidadão tem condições de produzir e fazer circular conteúdos. As mídias sociais, empresas que dominam o fluxo da comunicação interpessoal mediada por tecnologia digital, vivem e exploram esse trabalho coletivo (Fuchs, 2012) de bilhões de pessoas que produzem conteúdo e fornecem seus dados pessoais, hábitos de consumo, relacionamentos com amigos e familiares, matéria prima do negócio da comunicação no ciberespaço. Desse modo, a censura prévia aos moldes do século XX torna-se completamente inoperante. É preciso acompanhar os novos tempos. Os mecanismos de vigilância e interdição foram ampliados e dissimulados nas práticas rotineiras no mundo do trabalho. Segundo pesquisa realizada, pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação, do Comitê Gestor da Internet Brasil, CGI.br, denominada TIC Domícilio/Empresas 2012, 69% das empresas com mais de 10 empregados declaram restrição a sites eróticos ou pornográficos; e 61% delas afirmaram restringir acesso a jogos na Internet. Entre as grandes empresas, a restrição a esses tipos de conteúdos cresce bastante chegando a 94% no caso de conteúdos pornográficos. Além desse tipo de restrição, a pesquisa também colheu dados sobre as medidas preventivas e restritivas que as empresas vêm tomando com relação ao acesso e uso da Internet por seus trabalhadores. Empresas de comunicação como a Folha de S. Paulo, Rede Globo, Wall Street Journal e New York Times têm criado regras restritivas ao uso das redes sociais por seus jornalistas bem como criado uma normatividade de como o funcionário pode aparecer no espaço público das redes sociais. Essas práticas têm suscitado discussões sobre se é ou não direito da corporação controlar o uso dos meios virtuais de comunicação; se essa prática se constitui em censura ou não.
O mapeamento e análise partem de uma amostra de Manuais de conduta de 50 grandes e médias empresas brasileiras de setores econômicos diferentes. Em estudo exploratório, levantamos e analisamos sete desses manuais (Votorantim, Fibria, Maquina Public Relation, Grupo Informe de Comunicação Interna, Intel, Ibope, e Febraban) e verificamos a pertinência de nossa hipótese de estudo.
Realizaremos ainda entrevistas com profissionais que ocupam funções de controle e monitoramento das redes sociais nas empresas. Faremos o planilhamento dos indícios encontrados nos documentos por meio da análise de conteúdo e do discurso desses documentos e entrevistas.
Na perspectiva acima exposta, o artigo apresenta o estágio atual da pesquisa e discute os dados já mapeados e analisados. Será que o contemporâneo profissional com a função de analista de conteúdos desenvolve procedimentos de rotinas de trabalho que podem revelar os caminhos da renovação do conceito de censura? Se vivemos agora numa democracia como o Brasil nunca havia experimentado, certamente a sociedade aspira ampliação desse espaço democrático. Aspira maior participação o que redunda em novos moldes de organização da representação social, e implica a compreensão de quais são os mecanismos atuais que seguram ou impedem a ampliação da participação e a ampliação dos direitos democráticos. Para Habermas (1999), a esfera pública precisa ser reinventada pela razão comunicativa. Castells (2010) fala do controle da mente, em Comunicación y poder; Fuchs (2012) afirma ser improvável que o sistema do capital abra mão da vigilância dos cidadãos e reitera o pensamento de Marx ao estudar a vigilância como inerente ao capitalismo. Nossa pesquisa colabora para se entender as formas organizativas a partir das quais a vigilância e o controle se estabelecem como aspectos rotineiros e naturalizados da vida em sociedade, sobretudo quando essas ações vêm do mundo do trabalho e se tornam cristalizadas como normas sociais.

Palavras-chave: vigilância, controle, comunicação, monitoramento.