Da in-visibilidade na arte: códigos e corporificações

#44

Daniel Hora

As tecnologias difusas de telestesia, processamento e telecomunicação constituem a parafernália da experiência fenomenológica e social do mundo contemporâneo. Sua utilização é, no entanto, tão ambígua quanto o seu legado híbrido – de que fazem parte a pesquisa e desenvolvimento científico-militar e as adaptações aos usos econômicos e contraculturais. Esta genealogia impura fundamenta a existência de uma medialidade que tanto nos torna aptos a ampliar ao alcance planetário a escala de exploração e ação subjetiva a partir de uma base local, quanto nos transforma em objetos das forças de gerenciamento biopolítico reticular, articuladas fora do domínio acessível a contrapartidas de resistência e contestação efetivas.
Graças a esta dubiedade, a extensão sensorial pela qual observamos o mundo converte-se perversamente no mesmo meio pelo qual nos tornamos a cada passo mais visíveis, ainda que a contragosto. O que vemos é o que nos olha, não mais pela vitalidade latente dos artefatos discutida enquanto fenomenologia crítica do olhar pelo historiador da arte Georges Didi-Huberman (1998). Agora, o olho mágico tem via dupla graças à automação que media ou corporifica relações de poder na produção e fruição de artefatos culturais. A internet das coisas traz consigo os subterfúgios para o estabelecimento de uma operacionalidade panóptica pervasiva e não equitativa.
Com o avanço tecnológico, a crescente condição transacional de visibilidade é adotada em propostas de reflexão a cada dia mais relevantes no campo da arte hacktivista. Muitos projetos passam a se envolver no comentário e no combate contra as amarras de controle, bem como na defesa de práticas dissidentes e emancipadoras da subordinação opressiva. Alguns exemplos são a mídia tática do coletivo Critical Art Ensemble, a desobediência civil eletrônica do Electronic Disturbance Theater, a crítica sobre a obsolescência programada e os limites entre privacidade e publicidade por Lucas Bambozzi e à disrupção do comércio eletrônico por UBERMORGEN.COM e Mediengruppe Bitnik. Juntam-se a estes exemplos inúmeras ações de coletivos e espaços hackers que, embora não sejam proclamados com o propósito de inserção em circuitos artísticos, carregam abordagens poéticas para a heterotopia de zonas de contestação estabelecidas nas ruas e nas redes.
As realizações da arte hacktivista tentam suscitar o debate público e a reflexão individual sobre os caminhos da visibilidade. Em diferentes arranjos estéticos, é possível observar tendências que privilegiam o agenciamento multitudinário e o anonimato. Em outros casos, graus variados de transparência ou translucência (Bird, 2011) são articulados para a identificação daqueles que decidem promover a interferência, a pirataria e a contaminação como modalidades de resistência contrária ao controle protocológico embutido no próprio uso da tecnologia digital reticular (Galloway, 2004)⁠.
Para avaliar as implicações estéticas destas formas de dissidência artística, apresentaremos de início que tipo de produções podem ser levadas em conta, em contraponto à profusa extensão das atividades hackers (Wark, 2004) para além da discursividade mais próxima da arte. Em seguida, será necessário revisar o histórico cumulativo das lutas de emancipação contra o poder tecnocrático e corporativo, sobretudo no que diz respeito ao seus desdobramentos artísticos. Para isto, assumimos as guerrilhas semiológicas e a mídia tática como ponto de partida. Já o ponto provisório de chegada será o materialismo/realismo especulativo articulado tanto no pensamento (Bryant et al., 2011), quanto no fazer crítico (critical making) e na anarqueologia da mídia (Zielinski, 2008). Por fim, esse levantamento temporal embasará nossa análise a respeito dos graus de relevância dentro do espectro de proposições de in-visibilidade na arte, em suas variações do desvelamento à opacidade, implantadas conforme as diferentes posições de poder são inscritas nos códigos discursivos e performativos que se corporificam por meio da tecnologia.
Consideramos que o ativismo hacker na arte manifesta as implicações políticas da transição entre a escritura e o afeto. Sua participação neste fluxo reside na irrupção da diferença na relação código-imagem, entendida aqui como o fluxo de mão dupla entre programas e performances. A arte hacktivista lida com a multiplicidade, movendo-se por uma engenharia reversa de in/de/cisão de sentidos. Pois, ao lidar com a reserva de virtualidades e sua exploração factual em termos de linguagens, temporalidades e topologias híbridas, as poéticas de hacktivismo colocam em questão o alcance e os graus de conveniência da determinação (a decisão) dos usos e performances da tecnologia – a materialização ou corporificação do cálculo procedural. Agente de suspeição do que chega decidido com a tecnologia, a arte afirma-se também como poética política, ou est-ética, afeita à indecidibilidade (Derrida 1991) e contrária ao tecnodeterminismo.
Acreditamos que derivam da arte hacktivista práticas de resistência múltiplas e multitudinárias. Em vez de monolíticas, suas poéticas são heteróclitas e heterogenéticas, aderentes a diversas narrativas emancipatórias, o que a singulariza como vanguarda nômade, recombinante e rizomática, ou antivanguarda. Pois sua produção está menos interessada em estratégias utópicas e mais inclinada às táticas heterotópicas (Foucault, 2009) e circunstanciais de autonomias temporárias, mas recorrentes.
Inserida no contexto denominado como sociedade de controle por Gilles Deleuze (1992), a arte hacker demonstra que toda determinação de regras (e sua coerção) por meio da tecnologia sofre, de modo intrínseco, a concorrência da virtualidade da ruptura (a in-cisão) que refaz, pela interferência, a pirataria e a contaminação viral, as configurações do que é público e privado, precedente e futuro, contíguo e longínquo.
A arte hacker desvela a diferença produtiva na mediação tecnológica dos sentidos. Diferença que, no mesmo passo, decide o que disside, determina o que diverge (daí a cisão). Os sentidos que se articulam pela multiplicidade semântica: como a direcionalidade objetiva de toda produção (ação realiza para qual sentido), sua significação intersubjetiva (o sentido apreendido) e sua capacidade de afecção dos mecanismos de percepção (os sentidos do corpo e suas retenções e protensões em capacidades de animais e máquinas).
Podemos daí rever a caracterização apresentada da arte hacker como engenharia reversa da in/de/cisão dos sentidos mediados pela tecnologia. Pois o caráter precário e imediato das engenhocas dissidentes (e não Obras) da arte hacktivista reverte o engenho da destreza do fabricante e da operacionalidade eficiente do que é fabricado. Deste modo, a mediação tecnológica percorre sentidos diversos – é objetiva, lúdica, uni ou multissensorial, segundo a in/de/cisão que determina pela parcialidade das rupturas. Interessa portanto entender o que regula e o que possibilita a in/de/cisão.

Palavras-chave: estética, fazer crítico, in-visibilidade, mídia tática.

Referências:
Bird, L. (2014). Global Positioning: An Interview with Ricardo Dominguez. Recuperado em 30 de janeiro de 2014 de http://www.furtherfield.org/features/global-positioning-interview-ricardo-dominguez
Bryant, L. et al. (Orgs.) (2011). The speculative turn: continental materialism and realism. Melbourne: Re.press.
Deleuze, G. (1992). Postscript on the Societies of Control, 59 (Winter), 3-7.
Derrida, J. (1991). Margens da Filosofia. Campinas: Papirus.
Didi-Huberman, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34.
Foucault M. (2009). Outros espaços. In: Foucault, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema (p.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Galloway, A. (2004). Protocol: how control exists after decentralization. Cambridge: The MIT Press.
Wark, M. (2004). A hacker manifesto. Cambridge: Harvard University Press.
Zielinski, S. (2008). Deep time of the media : toward an archaeology of hearing and seeing by technical means. Cambridge: The MIT Press.