‘Espectro Livre’ como alternativa tecnopolítica à vigilância

#69

Adriano Belisário
Giuliano Djahjah Bonorandi

Um espectro ronda as comunicações hoje: o espectro eletromagnético. Cobiçado, este recurso encontra-se atualmente loteado no Brasil entre grandes empresas de telecomunicação, em especial operadoras de telefonia móvel, e alguns poucos detentores de concessão de rádio e televisão. Com a crescente popularização das tecnologias de informacao e comunicação, no entanto, abrem-se novas possibilidades de apropriação das tecnologias de telecomunicação sem fio pela sociedade civil.

Sem perceber, vivemos cercados pela comunicação via rádio. Compreendemos aqui "rádio" não apenas como as transmissões de ondas sonoras analógicas, moduladas por amplitude (AM) ou frequência (FM), mas como toda e qualquer transmissão de sinais eletromagnéticos pelo espectro. Assim, também estamos utilizando rádio ao fazer uso de tecnologias como a distribuição de internet sem fio (WiFi), bluetooth ou mesmo quando utilizamos serviços de telefonia móvel em celulares.

Dito isto, é fácil compreender o espectro eletromagnético como um recurso crucial na economia do século XXI. Para mencionar um exemplo recente, o Governo Federal do Brasil realizou em setembro de 2014 o leilão da faixa de 700MHz para operadoras de telefonia implementarem o serviço de transmissão de dados baseado na tecnologia de quarta geração (4G), arrecadando mais de R$ 9 bilhões de reais com a operação. No entanto, não teremos como foco no presente artigo as características mercadológicas do espectro, mas antes buscaremos explorar seu potencial para a promoção da democratização da comunicação autônoma para a sociedade civil.

Sem dúvidas, a Internet é um meio com enorme potencial para a comunicação horizontal entre pares (P2P - peer-to-peer) apresentando enorme vantagem em relação às mídias baseadas no modelo de broadcasting. No entanto, sua infraestrutura física de transmissão de dados é cara e encontra-se concentrada nas mãos de poucas empresas. Além disto, mesmo com iniciativas de anti-vigilância a nível lógico via softwares, a sociedade civil e mesmo governos encontram-se fragilizados, uma vez que não possuem controle ou ingerência sobre a camada física na qual trafegam seus dados - ou mesmo sobre determinados aspectos da camada lógica, como o gerenciamento do endereçamento DNS (Domain Name System, responsável pela tradução dos endereços na web em IPs). Quando considerada a nível governamental, esta falta de privacidade e autonomia pode ter consequências geopolíticas drásticas, como mostrou o recente caso de espionagem do governo brasileiro pelos Estados Unidos da América (EUA). Graças às revelações de Edward Snowden e outros sabe-se hoje que o Departamento de Defesa dos EUA faz uso até mesmo de grampos e interceptações no nível de hardwares para monitoramento em massa de comunicações.

Quando comparada aos cabos submarinos, fibras ópticas ou satélites em órbita, a transmissões de dados pelo espectro eletromagnético necessita de um investimento consideravelmente baixo, uma vez que bastam transmissores e receptores para tal: a propagação das ondas pelo ar encarrega-se do resto. Deste modo, a livre apropriação de faixas do espectro eletromagnético pela sociedade civil é uma questão urgente e crucial no âmbito da democratização da comunicação autônoma.

Apesar de ampliadas com as novas potencialidades trazidas pelas tecnologias digitais, a possibilidade da utilização do rádio para a comunicação horizontal entre pares não é de todo nova. Ainda no início do século XX, o dramaturgo alemão Bertold Brecht desenvolveu uma teoria do rádio que pode ser considerada visionária por antecipar muitos desafios - ainda atuais - da democratização da comunicação. Mesmo antes da digitalização dos meios, Brecht enfatizou o potencial interativo, democrático e democratizante daquele novo meio de comunicação. O fato do rádio ter se transformado majoritariamente em uma mídia de comunicação de massa deve-se menos a uma limitação técnica que a um direcionamento sociopolítico. Enfatizamos o majoritoriamente, pois os radioamadores e o movimento de rádios livres continuaram a apropriar-se do rádio como uma tecnologia essencialmente interativa e horizontal.

Ao longo do século XX, o espectro eletromagnético foi alvo de uma série de regulações governamentais que instauraram regimes de propriedade privada sobre este recurso comum. O presente artigo apresenta o conceito de 'espectro livre' e suas articulações teóricas e políticas para sondar novas possibilidades de construções de infrasestruturas autônomas de comunicação, baseadas na transmissão de informação digital pelo espectro eletromagnético. A investigação divide-se basicamente em três etapas. Na primeira, será feita uma abordagem conceitual sobre tal conceito, em especial na sua relação com as políticas públicas para a área de comunicação social no Brasil. Também será apresentada a noção de espectro aberto ("open spectrum"), de origem norte-americana, para demonstrar convergências e diferenças entre ambos os conceitos. Baseado neste abordagem, a segunda etapa irá apresentar algumas iniciativas da sociedade civil de apropriação de faixas do espectro para comunicação autônoma na América Latina, como por exemplo o projeto Rhizomatica que utiliza tecnologias livres e abertas para operar uma estação de telefonia móvel comunitária no México.

A partir de tal panorama sobre alguns conflitos e experiências envolvendo a regulação e uso do espectro, será introduzida a temática da vigilância. Sabemos que os atuais serviços comerciais de utilização do espectro eletromagnético são desprovidos de qualquer proteção à privacidade, em especial os celulares, que são um dos meios de comunicação por definição mais inseguros e invasivos em uso atualmente. Por outro lado, por exemplo, serão apresentadas algumas aplicações baseadas em rádio definido por software (SDR - software defined radio), rádio cognitivo, rádio digital e técnicas de criptografia como uma alternativas viáveis para uma comunicação sem fio que garantá autonomia e segurança para os usuários. Neste ponto, vale ressaltar que 'rádio digital' não se refere à transmissão de áudio pela Internet (WebRádios), mas sim à transmissão de dados binários pelo espectro eletromagnético, a partir de tecnologias como o DRM (Digital Radio Mondiale).

De modo geral, tais novas tecnologias refutam ou ao menos questionam severamente a chamada "escassez do espectro", utilizada como justificativa para o loteamento e apropriação privada de faixas do espectro eletromagnético. O espectro não é naturalmente escasso e as novas tecnologias de comunicação via rádio nos mostram diversas possibilidades de compartilhamento de suas faixas, sem prejudicar transmissões com interferências, como o já citado rádio cognitivo. Por fim, a investigação concluirá ressaltando aspectos tecnopolíticos da noção de espectro livre, em especial suas potencialidades de servir como base para o desenvolvimento de iniciativas para comunicação segura e com menor risco de interceptações ou vigilância.