Mata Hari ou “o olho do dia”: entre o Farol da Barra e as sombras do carnaval de Salvador, cidade da Baía.

#56

Núbia Bento Rodrigues
Débora Ferraz de Oliveira

Quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014. Noite de lua minguante e céu escuro. Uma face do Farol da Barra, visto do mar, iluminava a entrada da Baía de Todos-os-Santos. Era dia de maré morta. As águas estavam calmas e o faroleiro podia relaxar, sem se preocupar muito com o que acontecia no vértice da península de Itapagipe, enquanto os navios cargueiros avançavam das águas do oceano Atlântico para o porto de Salvador, Bahia, a 5 milhas náuticas, na parte interna da Baía.
Visto da terra, o Forte de Santo Antônio da Barra, monumento que abriga o Farol, estava iluminado por potentes fachos de luz artificial, capazes de fazer a noite virar dia. Uma multidão se concentrava no amplo gramado para apreciar e participar da cerimônia de abertura do Carnaval. Nos próximos sete dias, cerca de um milhão de pessoas atravessaram as ruas de três importantes bairros de Salvador, para dançar, cantar, se embriagar, namorar, atrás de caminhões equipados com gigantescos sistemas de som, os assim chamados trios elétricos.
Durante os dias de folia, 24 mil policiais foram convocados para trabalhar nas ruas, “garantir a segurança dos foliões”. Neste ano, a polícia contou também com a “GroundEye”. Trata-se de um sistema de vigilância eletrônica desenvolvido pela Elbit Systems, empresa israelense que presta de tecnologia de segurança para exércitos, estados e grandes corporações, pelo mundo afora, durante uma guerra, monitoramento de fronteiras ou simples defesa patrimonial de uma empresa privada.
Os dispositivos são capazes de gerar imagens em tempo real. Os registros das câmeras são transmitidos através de cabos de fibra ótica, para alimentar os bancos de dados dos centros de monitoramento remoto localizados, em alguns casos, a mais de 20 km de distância de onde acontece o carnaval. Os agentes treinados para monitorar estas imagens, por sua vez, são responsáveis pela capilaridade da informação no sentido oposto, orientando as ações dos policiais que atuam nas ruas, 24 horas por dia.
Estas super câmeras de cinco “olhos” estavam localizadas em pontos estratégicos do circuito. Outras 200 câmeras gravavam vídeos em alta definição, a partir de diferentes pontos, complementando a vigilância eletrônica adotada em 2014. Segundo os gestores públicos, os ótimos resultados alcançados permitem planejar o uso de recursos semelhantes em outros eventos de grande porte e alta concentração de pessoas. Além disso, eventuais manifestações e protestos políticos, tais e quais os que varreram o país em junho de 2013, estão na mira desta parafernália eletrônica.
Com este preâmbulo, esperamos esclarecer as razões da escolha do título e epígrafe deste texto. Mata Hari na língua malaia significa “o olho do dia”, aqui tomado como emblema para as questões que pretendemos abordar. A vigilância eletrônica e o fetiche em torno da tecnologia foram apresentadas pelos gestores públicos como parte do esforço do estado para garantir o bem estar e a segurança dos cidadãos no carnaval em Salvador. A parafernália eletrônica, tecnologia de ponta, é o símbolo máximo da segurança. É o olho que tudo vê, nada pode passar despercebido. No entanto, a partir de relatos de diferentes pessoas que foram vítimas da violência no carnaval de Salvador, em 2014, vamos explorar os diferentes sentidos que podem ser dados aos aparatos de vigilância no espaço público, ressaltando o descompasso entre as experiências de violência que se repetem nas crônicas cotidianas e as estatísticas “otimistas” divulgadas pelos poderes públicos, que não apenas negam seu crescimento, como advogam de que houve diminuição.
Desde o início dos anos 1990, o circuito de carnaval da Barra passou a atrair uma grande quantidade de pessoas, devido à sua localização privilegiada, na Orla Oceânica. A folia de Momo acontece no auge do verão do Atlântico Sul, de modos que a brisa fresca é um atrativo a mais, pois, ameniza o intenso calor tropical. Em 02 de março de 2014, o Sr. D. saiu de casa para curtir o carnaval na Barra, junto com amigos. Ao se aproximarem do portal da festa a poucos metros do Farol, Sr. D. sentiu um forte impacto e caiu ao chão. Acabara de levar um soco no meio do rosto que o levou a nocaute. Atordoado, Sr. D. levantou com a ajuda de um amigo e viu que um grupo de pessoas espancava seu agressor, um rapaz negro, jovem de corpo franzino. Sem muito pensar, Sr. D. se infiltrou entre os furiosos e conseguiu convencê-los de que o correto seria levar o rapaz até a autoridade policial.
Sr. D. segurou firme no braço do agressor, visivelmente drogado, ajudando-o a se levantar. Acompanhado de seus amigos, Sr. D. saiu à procura de agentes da Polícia Militar. O grupo se aproximou de um soldado da PM, de plantão num ponto de observação. Ao informar o que acabara de acontecer, Sr. D. notou que o policial não parecia muito disposto a “fazer o que tinha de ser feito”, isto é, encaminhar o agressor, a vítima e as testemunhas para que o fato fosse registrado e averiguado pelos agentes de segurança pública, num posto policial perto dali.
Sr. D. ficou perplexo e, mais que isso, muito revoltado, quando o policial demonstrou estar aborrecido por ter sido abordado pelo grupo e deixou o agressor escapar, quase intencionalmente. Mais uma vez, a vítima e seus amigos conseguiram capturar o suspeito e com a ajuda de policiais que passavam pela região e se dirigiram ao posto policial, montado dentro do circuito. A pessoa que o atendeu, disse para Sr. D. se dirigir à 14a. Delegacia Territorial da Policial Civil da Barra, situada na rua César Zama, na parte interna do bairro, cerca de 500m de distância do local onde estavam. O plantonista designou que os policiais acompanhassem o grupo. E todos saíram andando, abrindo espaço entre os inúmeros foliões que olhavam para a cena, com alguma curiosidade e pouco interesse, afinal, as agressões físicas gratuitas, os casos de roubo e furto são muito comuns no carnaval de Salvador.
A peregrinação de Sr. D. estava apenas começando, por volta das 23:30. Ao chegarem à 14a. DT, os policiais civis disseram que a ocorrência deveria ser registrada em outro lugar, dentro do circuito da festa. Sr. D. argumentou ter sido instruído pelo pessoal do posto policial a ir até ali. No meio da conversa, o agente da polícia civil perguntou o que o Sr. D. tinha feito de errado, para receber um soco no meio da cara. Insinuou que a vítima “tinha culpa no cartório”, o que equivale a dizer, se apanhou foi porque o mereceu. O policial disse que não poderia registrar a ocorrência, pois, durante o carnaval este tipo de controle deve ser realizado nos postos policiais instalados no circuito. Sr. D. argumentou ter vindo de um destes postos especiais, onde foi mandado para a delegacia. O policial se mostrou irredutível e o grupo foi obrigado procurar outra unidade policial, onde pudesse fazer o registro da ocorrência. A sequencia de fatos resumida neste parágrafo se repetiu até o sol nascer. Sem conseguir registrar a queixa de agressão, Sr. D. desistiu de fazer valer seus direitos de cidadão e decidiu procurar atendimento médico, para tratar da lesão entre o nariz e o olho direito.
Naquela mesma madrugada, enquanto Sr. D. perambulava de um órgão público para outro, o Sr. V. passava por experiência semelhante. No entanto, por um motivo bem específico sua história teve um desfecho distinto. Ele caminhava pela Av. Centenário, em direção à sua casa. É ator profissional, de um grupo que se tornou muito conhecido em Salvador, através de um canal de vídeos disponível no youtube. Ele tinha sido contratado para fazer um “pocket-show” de teatro, para entreter os foliões de um dos camarotes da Barra, nos intervalos das atrações musicais. A avenida é uma das principais vias de acesso para quem entra ou quem sai da folia. Um grupo de homens caminhava e conversava poucos metros afrente. Sr. V. desceu da calçada e apressou sua marcha pela pista de carros, para ultrapassá-los. Mas foi surpreendido por um empurrão que o jogou ao chão. Sem perceber o que se passava, teve o impulso de cobrir a cabeça com as mãos, quando sentiu os chutes em diferentes partes do corpo. Eram pelo menos quatro homens, de um grupo de dez, a espancá-lo, caído no chão. Os outros se divertiam com o “pocket-show” de barbárie urbana. Sr. V. tentava se levantar, gritando que nada tinha feito que pudesse justificar tal brutalidade. Não demorou para um carro da polícia se aproximar, com as luzes e sirenes ligadas. Os arruaceiros bateram em retirada, correndo na direção oposta à viatura policial. Um casal que presenciou a cena correu para ajudar Sr. V. a se levantar. Neste entre-tempo, a viatura policial parou bruscamente. Os PMs prestaram todo o apoio para Sr. V. Emprestaram o telefone para que ele ligasse para algum parente ou amigo que o pudesse acompanhar até 14a. DT, da Barra. Após o registro da ocorrência, os policiais levaram Sr. V. para um hospital nas imediações. Era recomendável que a vítima passasse por exames médicos completos, dada a extensão do espancamento.
Os desfechos diferentes dos dois casos são bastante estimulantes. E nos levam a perguntar por que os agentes de segurança pública “fizeram corpo mole” e impediram Sr. D. de registrar a ocorrência de agressão, na mesma madrugada e 14a. DT, onde o Sr. V. conseguiu realizar a queixa e ser encaminhado para atendimento médico, conforme previsto na lei? Por que o policial dentro do circuito e o agente da 14a. DT se mostraram incomodados por serem obrigados a lidar com a situação que lhes foi apresentada por Sr. D., até insinuando que ele era responsável pela própria agressão, como forma de desqualificar seu pleito de cidadão? Contrariamente, os policiais da viatura que socorreram o Sr. V. fora do circuito chegaram rápido ao local e já sabiam distinguir agressores e vítima, esta segunda foi encaminhada para a mesma 14a. DT.
Não faltam histórias de pessoas que passaram por situações análogas às que descrevemos anteriormente. Os relatos pessoais, filmagens realizadas por populares e divulgadas na internet, narrativas compartilhadas em redes sociais, não deixam dúvidas do aumento dos espancamentos aleatórios e sem motivo aparente. Basta que o alvo ou vítima tenha a infelicidade de cruzar o caminho de quem está louco para ver algum sangue espalhado pelo chão.
A despeito das evidências e pistas etnográficas que nos levam a considerar o crescimento desta forma banal de agressão física, na Quarta-Feira de cinzas de 2014, o governador do estado da Bahia e o prefeito da cidade do Salvador reuniram a imprensa para divulgar as “estatísticas da festa”. Comemoraram com alarde o decréscimo da violência. Por exemplo, em 2013, foram registrados 200 casos de lesões corporais; em 2014, foram 123. Em 2013, aconteceram 765 furtos; já em 2014, a queda foi de 40% (456 casos). Conforme suas avaliações, estes dados positivos foram o resultado do investimento preventivo em segurança pública. Isto justificaria o baixo número de ocorrências graves.
Mas, neste texto, a tecnologia de vigilância eletrônica que ajudou o Sr. V. a escapar de seus algozes não foi usada para validar e contabilizar a denúncia do Sr. D., que não foi registrada na 14a. CP da Barra. Se as câmeras captam brigas, agressões, lesões corporais, mas as vítimas supostamente não foram às delegacias, significa que estas ocorrências, estes fatos de violência não existiram, pois não foram chancelados pela queixa humanamente informada. Neste caso, a tecnologia perde a sua condição de objeto autônomo e maior alcance, quando comparada à visão humana. As câmeras do GroundEye são capazes de registrar tudo o que acontece, a qualquer hora, sob qualquer condição de luz. Mas por um artifício retórico, no entanto, ficam míopes quando se pretende validar estatísticas oficiais.

Palavras-chave: carnaval, Salvador, segurança, vigilância, tecnologia.