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Xenya Bucchioni
Tomando como ponto de partida o jornal alternativo Versus (1975-1979), editado em São Paulo, este artigo sublinha a relação travada entre a publicação brasileira e a revista Crisis (1973-1976), editada em Buenos Aires, identificando os traços essenciais do projeto político-cultural para a América Latina proposto por ambas. Sem perder de vista a aproximação, a presença e a (re)leitura entre estas publicações, o artigo discute de que maneira tal projeto contribuiu para a emergência de uma rede de relação que, se de um lado possibilitou à publicação brasileira burlar a vigilância oficial presente no período, de outro contribuiu para o surgimento de mecanismos de vigilância próprios para salvaguardar os intercâmbios efetuados.
Durante a década de 1970, a América Latina foi marcada por um período de intensas mudanças e contradições. Enquanto, os ventos do socialismo se espalhavam com vigor pelo continente – propagados pelos ideários da Revolução Cubana, pelo espírito jovem do maio de 68 francês e pelas lutas de libertação da África –, uma realidade atormentada por regimes ditatoriais, encorpados ou em gestação, se cristalizava.
Nesta via de mão dupla, o Brasil viu surgir uma série de novas publicações para dar voz aos mais variados projetos políticos e culturais. Solo fértil para pesquisas de âmbito acadêmico, esses veículos de comunicação constituíram a chamada imprensa alternativa, conhecida por sua atuação no combate ao regime ditatorial instalado no país entre 1964 e 1985.
Composta por um conjunto heterogêneo de jornais e revistas, esta imprensa abrangeu um período extenso, assuntos diferentes, origens e objetivos distintos, sendo o seu denominador comum se contrapor a interesses e/ou tendências dominantes, como observa Horta (2009). Marginal, independente, underground e artesanal são, ainda, outras denominações, apontadas por Moreira (1986) e Kucinsky (2003), para expressar os variados momentos da experiência cultural brasileira, nas quais se inserem este tipo de publicações, a partir da virada dos anos 1960, estendendo-se aos anos 1970.
Atentar para tal variedade nos permite, portanto, perceber que por detrás de um conceito comumente utilizado para definir certa prática jornalística levada a cabo durante o regime de exceção, operaram diferentes propostas de jornalismo, o que torna tais publicações um lócus privilegiado para compreender os traços da realidade social e da criação estética que cortaram o período e foram comportados pelas mesmas.
Para explorarmos esse universo, tomamos com ponto de partida o jornal Versus, lançado em outubro de 1975. Sua escolha não se dá por acaso: a publicação insere-se no período em que o padrão alternativo atinge o seu apogeu, entre 1975 e 1977 (Kucinsky, 2003).
Representante da chamada imprensa alternativa surgida durante o regime ditatorial brasileiro, a publicação se diferencia das demais por sua inspiração, proximidade e diálogo com a revista Crisis, lançada pelo jornalista uruguaio Eduardo Galeano, na Argentina, em maio de 1973 (e extinta em 1976). A semelhança entre ambas se entrelaça numa proposta singular: a construção de um projeto político-cultural para a América Latina. Um desafio que implicou à publicação brasileira um árduo trabalho de tradução, de reutilização dos textos de Crisis e da manutenção de uma intensa rede de colaboração vinda do exílio vivido por muitos latino-americanos.
Neste artigo, procuramos (re)desenhar esta rede de relações que, se de um lado possibilitou burlar a vigilância oficial existente no período, do outro contribuiu para a emergência de mecanismos de vigilância próprios para salvaguardar os intercâmbios efetuados. Comecemos, então, a trilhar o nosso caminho.
A cultura como forma de ação
Sem manifesto inaugural ou declaração de princípios, a primeira edição do jornal Versus pode ser lida como uma metáfora a um clima em que a morte parecia querer sufocar a vida. O tema perpassa as 52 páginas do exemplar de estreia, que saiu das gráficas em outubro de 1975 para alcançar as mãos dos leitores, justamente, num momento marcado pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo – fato que se traduziu em uma nova onda de protestos contra o regime militar e colocou à prova a prometida abertura anunciada pelo governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Versus constitui-se, então, como um espaço emergente e condensador desse cenário – desde que pensemos no conjunto de disposições que permitiram a sua produção e a sua leitura. Assumimos, portanto, o entendimento de que jornais e revistas são um ato coletivo que se diferencia da produção individual de seus membros.
Nesse sentido, desde o sumário da publicação, construído à semelhança de Crisis, temos uma espécie de mosaico no qual se desenha o “espírito de uma época”, como observado por Sonderéguer (2009). Não se trata, aqui, de delimitar um espaço homogêneo, pois sua unidade estética, cultural e política não adquire a forma de uma doutrina uma vez que se expressa em adesões, rechaços e controvérsias – elementos, aliás, que ora aproximam a publicação brasileira da argentina ora as distanciam.
Somam-se a esse movimento de ideias expressado no sumário, as permanências, as rupturas e os (re)arranjos que remontam o expediente de Versus – ou seja, a formação da equipe de redação e também de sua rede de colaboradores. Um painel que exprime o movimento das ideias no tempo e nos permite visualizar não apenas o estado cultural do período, mas sobretudo em que medida suas páginas contribuíram para conformá-lo.
Datada de maio de 1973, a primeira edição de Crisis é composta por uma série de inéditos literários – de Ernesto Sábato, Henry Miller, Neruda, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Lenin, Manuel Rojas – que revelam o clima de abertura, o “arejar de ideias” provocado pelo regresso de Perón à Argentina e sua vitória nas eleições presidenciais, ocorrida no mesmo ano do lançamento da revista.
Em Versus, a incerteza ante o terror e o horror herdado da era Medici (1969-1974) compõe o cenário do exemplar de estreia. Em sua capa, lê-se: “Eu fui condenado à morte (Confissões de um repórter argentino)”; “Eu me condenei à morte (Diário de um escritor peruano)”; “Nós vivemos na morte (A vida em um hospício mineiro)”. Ao mesmo tempo, a edição traz ainda uma extensa entrevista com Michel Focault, versos em homenagem ao poeta paraibano, negro e analfabeto, Zé Limeira, uma tradução do ensaio “Política e crime”, do poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, um artigo de Eduardo Galeano, o relato de um jornalista brasileiro sobre a vida no país Basco, a música com inspiração latino-americana do grupo Tarancón, uma crônica de João Antônio e um artigo de Eduardo Galeano. Há também notas – artigos e comentários breves sobre música, literatura, arte e cinema – uma interrogação sobre uma das (muitas) problemáticas que atravessaram essa época, “Música popular ou música contra o povo?”, e uma reflexão sobre o colonialismo a partir de Angola.
Neste primeiro número, estão esboçadas algumas das linhas constitutivas do que será, com alguns ajustes e novas reflexões, a proposta do projeto cultural e político de Versus – a articulação de um pensamento nacional e latino-americano, a cultura popular, a literatura, a história. Nele se encontram também boa parte das escolhas e dos rechaços efetuados.
O leitor mais atento notará que a publicação fala do Brasil pela margem, ao lançar luz sobre a existência de países vizinhos com realidades próximas as vividas pelo país naquele período. Estratégia que, além de ter servido para manter a segurança da equipe, revela a opção pela autocensura como mecanismo de garantir a sobrevida da publicação, poupando a canetada vermelha da censura oficial ainda ativa em 1975 (Barros Filho, 2007).
Nesse contexto, os grafismos assumem um papel importante: ocupam o lugar tradicionalmente destinado as imagens e se convertem numa forma de testemunho. Na profusão de ilustrações de corpos e caveiras parece querer se construir a ideia de que é o real aquilo que a publicação oferece aos leitores.
Assim, embora partam de uma mesma proposta, os primeiros exemplares de Versus e Crisis oferecem ao leitor realidades díspares que se encontram num ponto comum: a América Latina – seja pela autoria de alguns dos principais conteúdos destacados em suas capas ou pela presença nos demais textos que compõe as edições. Por isso, vale destacarmos alguns acontecimentos essenciais à localização espaço-temporal de Versus, os quais inevitavelmente nos colocam em contato com Crisis, e contribuem para visualizarmos o cenário possível para o surgimento de ambas.
Ao largo da década de 1960 e estendendo-se aos 70, o continente vira nascer diferentes movimento revolucionários e modificações importantes em seu campo cultural. Nesse enquadre, encontram-se fenômenos como, por exemplo, o chamado boom literário latino-americano, que marcou a década de 1970 e colocou sob os holofotes internacionais a literatura de países até então periféricos. Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti, Alejo Carpentier, Miguel Ángel Asturias, José Donoso, Juan Rulfo e Ernesto Sábato são alguns nomes de uma vasta lista de escritores que, naqueles anos, assumiram a condição de latino-americanos.
Sabemos, contudo, que alguns dos autores mencionados já haviam publicado seus romances na Europa, sendo o boom literário responsável por ampliar a difusão das obras a um círculo maior de leitores interessados em descobrir um pouco mais sobre o continente no qual se dera a Revolução Cubana. Vale destacar ainda que, além de muitos destes autores terem circulado nas páginas de Crisis, a revista teve como primeiro diretor editorial o romancista Ernesto Sábato.
Outro ponto a ser destacado, diz respeito à participação dos exilados na imprensa alternativa – seja como colaboradores diretos ou como fonte para entrevistas. Afinal de contas, a descoberta da América Latina também perpassou a experiência do exílio, sobretudo no caso dos brasileiros, como aponta Rollemberg (1999), ao destacar que a atmosfera do continente e a proximidade geográfica com o Brasil o tornava não apenas ponto de chegada, mas também um projeto político das gerações de 1964 e 1968 – àquelas que partiram, respectivamente, no início do golpe e, logo após, o decreto do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.
Se o Uruguai foi o principal polo de atração da primeira geração, a partir de setembro de 1970, com a vitória eleitoral da Unidade Popular, o Chile de Salvador Allende torna-se a rota principal de quem partia do Brasil.
Em Versus há inúmeros exemplos da presença do exílio. Basta atentarmos, por exemplo, ao fato de que Eduardo Galeano havia deixado o Uruguai quando a publicação argentina foi lançada e, após o seu fechamento, em 1976, ele passa a colaborar com Versus desde a Espanha ou, ainda, que a coluna “Coração Americano”, presente na publicação brasileira era preenchida, por vezes, com relatos sobre o desterro escritos pelo jornalista brasileiro Eric Nepomuceno, que também possui textos publicados em Crisis. Ambos os casos se convertem em indícios da rede de relações construída a partir de um olhar comum para a América Latina.
Juntos, esses ingredientes tornaram possível as experiências de Versus e Crisis num processo dialético: ao mesmo tempo em que ajudaram a produzir estas publicações foram, também, por ela produzidos – isto é, passaram a ter uma existência garantida em suas páginas, ocupando um espaço, até então, abandonado pela grande mídia. Apostas a serem observadas para além dos termos de presença uma vez que encontram razão de ser nos marcos do projeto almejado como este artigo se preocupará em delinear.
Palavras-chave: América Latina, exílio, imprensa alternativa, vigilância, Versus.
Referências bibliográficas
Barros Filho, O. L. de. Versus: Páginas da utopia – Antologia de reportagens, entrevistas, ensaios e artigos. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
Horta, S. A. (2009). Imprensa Alternativa – comentários sobre o acervo. In: Kushnir, B. (Org.) Maços na gaveta: reflexões sobre mídia. Niterói: EdUFF.
Kucinski, B. (2003). Jornalistas e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa (2. ed.). São Paulo: EDUSP.
Moreira, S. (1985). Vinte anos de imprensa alternativa. Rioarte, O poder da imprensa alternativa pós-64, Histórico e Desdobramentos.
Moreira, S. (1986).As alternativas da cultura (Anos 60/70). In Mello, M.A. (Org.). 20 anos de resistência: alternativas da cultura no regime militar. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo.
Sondereguér, M. (2001). Revista Crisis (1973-1976) Del intelectual comprometido al intelectual revolucionário. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes.
Sondereguér, M. (1996). Crisis: Las certezas de lós ’70. Argentina: Universidad de Buenos Aires.
Rollemberg, D. (1999). Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record.