#14
Otávio Gomes Rocha
A compulsão por mapear é um atributo essencial do Estado-Nação. Ao entender a si próprio como uma entidade territorial, o Estado assume a necessidade de controle sobre a localização de todas as coisas. Nesse sentido, a cartografia consolidou-se como uma das principais ferramentas do processo de expansão colonial e imposição da territorialidade moderna na experiência latino-americana. Contudo, em uma sociedade onde os atores individuais assumem certo protagonismo e os movimentos e fluxos complexos dão o tom da espacialidade, o Estado vê a necessidade de reconfigurar suas formas de mapear. E qual a melhor forma de mapear os indivíduos se não deixá-los mapear a si mesmos?
Com o desenvolvimento dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e popularização das práticas de mapeamento participativo, vêm se instaurando atualmente uma disputa sobre o processo de mapeamento. De um lado, movimentos sociais, grupos autônomos, comunidades tradicionais e indígenas, e outros sujeitos sociais, ressignificam o ato de cartografar, que historicamente esteve associado às práticas coloniais e imperialistas, criando processos criativos de afirmação política de suas territorialidades. Por outro lado, instituições estatais e militares, agências multilaterais de desenvolvimento e grandes corporações capitalistas, vêm reconfigurando suas formas de exercer o controle sobre o território, apropriando-se da retórica da participação popular e inserindo-se cada vez de forma mais atuante na disputa sobre a apropriação social do mapeamento. Esta declarada “Guerra dos Mapas” (Acselrad & Viégas, 2013) gera intensos debates no campo teórico da cartografia.
Da mesma forma, os impactos sociais das tecnologias de informação espacial e o uso SIGs participativos (PGIS ou SPIG, em português) vêm sendo amplamente debatidos. As perspectivas variam desde aquelas que enxergam amplas possibilidades nestas ferramentas como projeto de oposição crítica à cartografia oficial (Perkins, 2007), àquelas que enxergam ressalvas importantes a serem feitas à disseminação desmesurada destas tecnologias (Frenierre, 2007; Cramptom, 2009). Também há aqueles que possuem visões mais pessimistas sobre as tecnologias de informação espaciais, sobretudo em relação às ferramentas participativas que enaltecem exacerbadamente um discurso supostamente democrático e horizontal na produção cartográfica (Dunn, 2007; Fox et al., 2008).
A tradicional cartografia do Estado-Nação demiúrgico tem abandonado muitos de seus atributos tipicamente modernos (o cartesianismo puro, a fixidez do espaço e da escala, a dimensão político-administrativa, etc.) para incorporar elementos característicos de uma “virada cartográfica” (Lévy, 2008). Este movimento está associado não apenas a mudanças estruturais na cartografia enquanto representação, mas, principalmente, nas territorialidades e na forma como o Estado se relaciona com os indivíduos. A incorporação da voz dos atores individuais e coletivos na construção de políticas territoriais, por exemplo, fazem parte do movimento que pode ser chamado de “virada territorial” (Offen, 2003). Todavia, essas novas estratégias de participação estão constantemente em disputa, e não devem ser vistas como panaceia.
Esta flexibilização da participação popular nas políticas territoriais, para além do mérito dos movimentos sociais de inserirem-se na política, em certa medida está relacionada, de um lado, com o avanço neocolonial das fronteiras do Estado sobre o controle total dos recursos territoriais e, de outro, da estratégia sutil de aniquilação de quaisquer possibilidades de insurgência antissistêmica.
Estas complexas mudanças paradigmáticas que envolvem a relação entre Estado, território e sociedade, apontam para diversos caminhos possíveis e questões a serem problematizadas. Todavia, a partir deste trabalho, e provocados pelas instigantes temáticas propostas pelo III Simpósio Internacional LAVITS, pretendemos nos centrar no exercício de práticas de mapeamento participativo em processos de disciplinamento e controle territorial desde o Estado e outros atores hegemônicos. Nesse sentido, o trabalho estrutura-se em torno de quatro questões norteadoras: 1) Quais são as mudanças paradigmáticas na cartografia que caracterizam este contexto de “virada cartográfica” e quais os elementos que sustentam estas transformações? 2) Como o Estado e outras entidades de controle territorial apropriam-se destas transformações para a renovação das estratégias de controle? 3) Em que medida a noção de participação pode ser problematizada nestas experiências e a quem serve dita participação? 4) Existem possibilidades desde o mapeamento participativo para a afirmação de novas identidades políticas e construção de territorialidades autônomas para além da lógica moderno-colonial do Estado?
Alguns aspectos teórico-metodológicos devem amparar a busca pela resposta de tais perguntas, a partir da definição do locus epistemológico que assumimos como sustentáculo da pesquisa. A partir das discussões críticas sobre a cartografia no marco da relativização da construção social dos mapas, resgataremos o panorama atual das transformações que a cartografia atravessa, sejam em forma, conteúdo, contextos e processos de produção. Nesse sentido, buscaremos caracterizar os novos atores e as novas ferramentas de mapeamento, que geram distintas ambiências na relação entre o ato de mapear e a apropriação do território. As apropriações dos atores hegemônicos de controle territorial sobre as práticas participativas de mapeamento devem ser exploradas com a análise de algumas experiências, como a denúncia de “geopirataria” no programa “Expedições Bowman” realizado no México, o projeto “Todo Mapa Tem Um Discurso” em curso na cidade do Rio de Janeiro e a inserção da GIZ (Agência Internacional de Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável) em processos de mapeamento participativo no Brasil. As diferentes formas de tecnologias empregadas nestes tipos de mapeamento participativo devem ser problematizadas a fim de, possibilitar uma leitura crítica sobre estas ferramentas.
Assim, a noção de participação nestes processos de mapeamento deve ser problematizada, a partir da identificação dos atores responsáveis pelo “controle social do mapeamento”. Ou seja, buscamos questionar quem detém o controle sobre o que deve ou não ser mapeado? Quais as finalidades do mapeamento? Quem será responsável por controlar as informações territoriais mapeadas? Algumas destas questões foram propostas por Acselrad & Viégas (2013, p. 20) como propostas de investigação em experiências de mapeamento participativo. Nesse sentido, deve-se colocar em questão ainda a relação estabelecida entre a racionalidade territorial dos sujeitos mapeadores e as premissas do mapeamento, quando são propostos por agências estatais ou outros atores hegemônicos.
Enfim, o trabalho aponta para o questionamento sobre a possibilidade das práticas de mapeamento participativo para fortalecer processos autônomos de arraigo e outras formas de relações com o território alternativas à lógica do Estado moderno. Todavia, entra em pauta o paradoxo da relação entre visibilidade e invisibilidade para a construção de uma lógica contra hegemônica, alternativa à modernidade/colonialidade.
Palavras-chave: mapeamento participativo, controle, cartografia, territorial, tecnologia.
Referências:
Acselrad, H. & Viégas, R. N. (2013). Cartografias sociais e território – um diálogo latino-americano. In: Acselrad, H. (Org.) Cartografia social, terra e território. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR.
Cramptom, J.W. (2009). Cartography: maps 2.0. Progress in Human Geography, 33(1).
Dunn, C. E. (2007). Participatory GIS – a people's GIS? Progress in Human Geography, 31(5).
Fox, J. et al. (2008). O poder de mapear: efeitos paradoxais das tecnologias de informação espacial. In: Acselrad, H. (Org.) Cartografias Sociais e Território (p.71-84). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, (IPPUR).
Frenierre, J. (2007).Answering the critics: how participatory Gis address the social. Consequences of geospatial Technologies. In: Taylor, M. Fundamental Geographic Perspective.
Lévy, J. (2008). Uma virada cartográfica. In: Acselrad, H. (Org.). Cartografias sociais e Território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008.
Offen, K. (2003). The Territorial Turn – Making Black Communities in Pacific Colombia. Journal of Latin American Geography, 2(1), 43-73.
Perkins, C. (2007). Community Mapping. Cartographic Journal, 44(2), 127-137.