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Loraine Amaral Nogueira
O discurso oficial proeminente de que a Copa do Mundo de 2014 produziria benefícios para o Brasil, posteriores ao evento, foi usado para justificar grandes investimentos em obras de infraestrutura e na aquisição de tecnologias avançadas. Esse esforço corresponderia à produção de um “legado”, ou seja, conjunto de bens, que após o período da Copa viriam a ser úteis para o dia a dia da população.
O legado material, como a construção de vias de acesso, (re)construção de estádios e remoções espaciais, podem ser facilmente identificados. Entretanto, outras transformações desencadeadas em virtude deste megaevento, menos sensíveis à vista, demandam um profundo estudo que busque identificar os atores envolvidos, bem como suas motivações e relações.
Dentre os legados anunciados, pretendia-se que o mais promissor fosse o novo modelo integrado de Segurança Pública e Defesa Social, cuja implementação estava sob responsabilidade da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (SESGE), órgão do Ministério da Justiça.
De acordo com o Planejamento Estratégico de Segurança para a Copa do Mundo de 2014, os três níveis de governo deveriam trabalhar em estreita cooperação para integrar as instituições do Poder Público e criar condições favoráveis para o gerenciamento e resposta em caso de catástrofes naturais ou distúrbios civis, por meio da implementação de ações de prevenção de riscos. Dentre as novidades deste modelo de inspiração internacional, está o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC).
Inicialmente, as estratégias em segurança teriam três focos principais: ameaças externas; a proteção de portos, aeroportos e fronteiras; e ataques cibernéticos. Entretanto, como ao longo de 2013 foram recorrentes manifestações de demandas diversas, sem lideranças, organizadas por meio de redes sociais, uma tensão entre instâncias de segurança e os movimentos sociais foi gradualmente sendo desenvolvida. Assim, um novo elemento de risco passou a ser incluído no planejamento da segurança para a Copa do Mundo do ano seguinte.
A possibilidade das manifestações resultarem em confronto direto com a polícia preocupou tanto no que concerne à manutenção da ordem pública nas áreas circundantes aos estádios, quanto a segurança dos cidadãos, principalmente dos espectadores. Neste sentido, os protestos foram considerados pela SESGE o principal desafio daquele período.
Embora tenha sido a primeira vez que o país foi palco de manifestações generalizadas, espontâneas, sem demandas consideradas claras pelo governo, inicialmente, e sem lideranças políticas; este tipo de mobilização assemelha-se a movimentos de outros contextos, levando a considerar que há algum fator comum de cunho internacional. Porém, é fundamental considerar não só as semelhanças, como as diferenças, entre este fenômeno e outros considerados “contemporâneos” como o “Occupy Wall Street”, em 2011 e “Los indignados de la Puerta del Sol”, também em 2011.
Enquanto os protestos se popularizaram pelo país, também passaram a concentrar cada vez maior número de manifestantes, de forma que estes sofreram um processo classificatório muito peculiar, originando tipificações como, por exemplo, “manifestantes pacíficos”, “vândalos”, e “baderneiros”, dentre outros. Nesse processo, os materiais utilizados pelos manifestantes, bem como sua conduta nas manifestações e nas redes sociais ganharam destaque.
Diante desse contexto, busca-se compreender os fenômenos que contribuíram para o surgimento de novos atores, assim como as relações e os conflitos que se desenvolveram durante o período em questão, apontando para o uso cada vez mais imprescindível da tecnologia na construção da realidade.
Para refletir sobre as manifestações generalizadas organizadas em rede, utiliza-se como referências autores que abordaram o assunto diretamente. Neste sentido, são consideradas fenômeno de caráter espontâneo, cuja incidência limita-se a contexto específico de indignação popular, desenvolvido na internet , mas que exerce influência direta na realidade (Castells, 2007, 2013). Desta forma, a pesquisa não se norteia pela distinção “online” X “offline”, trata-se de um trabalho realizado nas duas dimensões (Kendall,1999), guiado por reflexões recentes a respeito de “como pensar a antropologia e fazer etnografia no ciberespaço” (Rifiotis et al., 2010).
Ao compreender as tecnologias e outros materiais não-humanos, como por exemplo: máscaras, vinagre, bandeiras, spray de pimenta, câmeras e fotografias, como de suma importância para o estudo do presente tema, as reflexões alinham-se a trabalhos e teorias desenvolvidos em torno da agência dos objetos. Assim, as relações entre manifestantes, mídia e instâncias da Segurança são analisadas em sintonia com a Teoria Ator-Rede (Law, 1992), de forma a produzir um mapeamento os processos conectivos (Teixeira, 2001) que estão constantemente sendo (re)produzidos em redes heterogêneas e sociotécnicas de caráter instável (Latour, 2005).
Durante os protestos, não foi apenas a SESGE que monitorou os manifestantes, os manifestantes também denunciaram a atuação da polícia através de fotos e vídeos publicados na internet. Aponta-se, portanto, para discussões contemporâneas acerca da democratização do processo produção do discurso tido como oficial e legítimo, propiciada pelas novas tecnologias. Além disso, interessa também a relação do ciberativismo com a mobilização social (Antoun, 2013; Malini, 2013), que sugere uma mudança na natureza do poder, do modelo hierárquico e verticalizado; para o difuso, horizontal e disseminado (Deleuze, 1988) entre os nós das redes de um intricado sistema de registro e reconhecimento.
A pesquisa de ordem qualitativa está sendo elaborada com utilização dados extraídos de publicações jornalísticas oficiais e acadêmicas sobre a temática, e por meio da experiência etnográfica distribuída entre três ambientes:
- O trabalho de campo realizado no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) do Rio de Janeiro, localizado na Rua Carmo Neto- Cidade Nova, incluiu acompanhar e participar da rotina dos operadores da sala de “operações de despacho”, de palestras de orientação aos integrantes das instituições alocadas no prédio e em conversas com integrantes de diferentes instituições.
- No Facebook, a imersão significou a participação em páginas com formato de fórum, denominadas “evento”; somada à análise de publicações de sujeitos que reconheciam a si mesmos como manifestantes e do conteúdo de páginas influentes durante o período em questão, como por exemplo os “Black Blocks” e a “Mídia Ninja”, além de outros chamados “coletivos de mídia alternativa”.
- O comparecimento às manifestações foi fundamental para perceber o desenvolvimento das ações coordenadas da polícia em contraste com a atuação descentralizada dos manifestantes, para uma aproximação com os informantes e para a assimilação de conteúdo não-verbalizado através da produção compartilhada de sensações e sentidos.
Resultados preliminares:
Dentre as principais transformações observadas até o momento, são dignas de destaque:
(i) o surgimento do “midiativista” e a proliferação dos “coletivos de mídia alternativa”, como veículo midiático democrático e de organização descentralizada;
(ii) a proliferação de ataques virtuais de cunho político, denominados hacktivismo ou cyberativismo, que buscaram chamar atenção para uma questão de utilidade pública, em detrimento do “crime cibernético” temido pela SESG, cujo perfil limitava-se inicialmente à ataques ao sistema operacional de realização do evento ou roubo do banco de dados;
(iii) a difusão, sem precedentes em termos nacionais, de manifestações e protestos generalizados sem sujeito(s) ou entidade(s) ocupando papel de liderança;
(iv) os agenciamentos híbridos, responsáveis pela rede que culminou nas “jornadas de junho”;
(v) o conflito público dos discursos oriundos de diferentes atores somado a um processo de “reconstrução coletiva dos fatos”;
(vi) um processo classificatório complexo dos manifestantes; e
(vii) a revisão de eventos “de risco” considerados prioritários no que se refere à investimentos em prevenção e contenção situacional no planejamento da SESG para os próximos eventos.
CONCLUSÕES PRELIMINARES
Embora a pesquisa ainda encontre-se em desenvolvimento, já é suficiente para dar luz sobre alguns fenômenos oriundos do período tratado. Ao comparar notícias e discursos, controvérsias entre o planejamento e a execução do Megaevento sobressaíram; revelando, para além do “legado” estimado, consequências inesperadas deste episódio em que a tecnologia foi central, tanto na flexibilização do espaço-tempo, como no reorganização dos agenciamentos sociotécnicos.
Nesse sentido, os componentes do “outro legado” são:
- O reconhecimento da tecnologia, dentre outros materiais não humanos, como componente do agenciamento sociotécnico responsável tanto por um maior e melhor aparelhamento das instâncias de segurança, quanto pela criação de novas redes associativas de indivíduos;
- A criação de um novo hábito dos manifestantes e cyberativistas ao usarem a rede sociotécnica para darem visibilidade política às suas demandas ou fazerem denúncias, e o grande passo a favor da democratização dos meios de comunicação. Transformando os “Coletivos de Mídia Alternativa” como um subproduto da internet, que age como propiciadora de produção e troca simbólica no contínuo processo de construção dos sujeitos, dos discursos e da própria realidade;
-A constatação da transição no modelo de poder, com a popularização de movimentos organizados em redes virtualizada associativas, que deixa de ser virtualizado e hierárquico e passa a ser disseminado.
Levando-se em consideração que mais um Megaevento se anuncia, as Olimpíadas de 2016, mais tempo de observação e estudo se faz necessário para continuar a desenvolver uma análise que contemple as consequências da relação oriunda do agenciamento sociotécnico na atuações futuras dos manifestantes ou dos cidadãos que se beneficiam do canal de “mídia alternativa”, e das instâncias de Segurança; além de produzir uma reflexão mais abrangente que considere também fenômenos contemporâneos internacionais e aparentemente similares.
Palavras-chave: tecnologia, mobilização, Copa do Mundo, manifestações, protestos.
Referêcias bibliográficas:
Antoun, H. & Malini, F. (2013). A Internet e a Rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina.
Castells, M. (2000). A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.
Castells, M. (2013). Redes de indignação e esperança: Movimentos sociais na era da internet. São Paulo: Zahar.
Deleuze, G. (1992). Post-scriptum sobre as sociedades de controle'. In Conversações. São paulo: 34.
Kendall, L. (1999). Recontextualizing ‘Cyberspace’: Methodological considerations for online research. In Jones, S. (Ed.). Doing internet research (p. 57-74). London: Sage.
Law, J. (1992). Notes on the Theory of Actor Ne-twork: Ordering, Strategy and Heterogeneity. Centre for Science Studies: Lancaster University.
Latour, B. (1990). Ciência em Ação: seguindo cientistas e engenheiros sociedade afora. Paris: Pandore.
Latour, B. (2005). Jamais Fomos Modernos: Ensaios de antropologia Simétrica, São Paulo, 34.
Lacerda, J. et al. (2010). Antropologia no Ciberespaço. Santa Catarina: Editora da UFSC.
Ministério da Justiça - SESGE. (2014). Planejamento estratégico de segurança para a copa do mundo FIFA Brasil 2014.
Teixeira, M. de O. (2001). A ciência em ação: seguindo Bruno Latour. História, Ciências e Saúde, 8(1).