#16
Marcela de Moraes Batista
Sérgio Carvalho Benício de Mello, Cédrick Cunha Gomes da Silva, Rita Rovai Castellan
O inicio do século 21 foi marcado por uma série de ataques terroristas, tendo como marco a queda das torres gêmeas, no centro do coração financeiro de Nova York, e os subsequentes ataques em solo americano. Todavia, o fato mais comentado, discutido e problematizado não foi as quase três mil mortes, e sim, o ruir de um império.
Após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, houve uma intensificação da vigilância em quase todos os aspectos, sejam eles políticos, econômicos, sociais ou culturais, tornando-se uma tendência mundial. As nações mundo a fora, reforçavam a ideia do uso de sistemas de vigilância para manter a segurança nacional e afastar o temor de um novo ataque terrorista (Lyon, 2007).
Neste contexto, as tecnologias de vigilância passaram a utilizar o discurso do medo para implantar seus aparatos, e toda a sociedade entra em um tipo de cultura do controle (Graham, 2006). O medo que é derivado de um risco em potencial, porém real, passou a ser visto como uma nova forma de controle e poder. "O medo é o mundo, o pânico é um todo" (Virilio, 2012, p. 3). Ao afirmar isso o autor se refere ao uso pânico generalizado no que ele chama de “administração do medo” como uma nova arma política, econômica e social. Agora o inimigo, poderia ser qualquer um, não tinha mais rosto, etnia ou crença.
Depois de 11/9 muitas das liberdades conquistadas por meio de lutas por igualdade e direitos civis foram revogadas por leis como a US Patriot Atc (Lyon 2003). Essa lei assegura que, todo e qualquer cidadão será alvo em potencial de uma investigação e o governo terá acesso sem restrições a qualquer dado a qualquer hora. "A ideologia da segurança" passou a compor todos os sistemas de vigilância ao redor do mundo (Virilio, 2012).
Neste contexto, os megaeventos passaram a ser alvo de possíveis ataques terroristas, exigindo dos responsáveis uma maior atenção ao quesito segurança, com foco em detalhes. Nesse sentido, os megaeventos atuais além de serem um momento de competição, lazer, confraternização, fé ou reuniões políticas, é também um espaço para a ampliação do controle dos fluxos sociais, por meio de implantação de sistemas cada vez mais sofisticados de vigilância eletrônica. A liberdade passa a ser vista como uma falsa ilusão implantada pelo sistema que controla os comportamentos sociais (Foucault, 1996).
Um dos megaeventos, que foi diretamente afetado por esta onda de medo e vigilância, foi a Copa do Mundo de Futebol Masculino, já que é um megaevento com projeções globais realizados a cada 4 anos, sediado por diversos países. Depois de 2001, a vigilância e o controle modificaram a face deste megaevento, a exemplo do que ocorreu nas edições de 2006 na Alemanha e de 2010 na África do Sul. Nessas edições da Copa a principal preocupação de nações, jogadores e da mídia estavam dirigidas à segurança dos jogos. Na edição de 2014, no Brasil, isto não seria diferente.
Apesar do país nunca ter tido nenhum caso de atentado terrorista, a segurança fronteiriça e urbana abre essa possibilidade, principalmente durante a realização dos jogos. Cientes da urgência em manter o megaevento seguro e da onda de vigilância eletrônica pós-11 de setembro de 2001, a Federação internacional de Futebol (FIFA), por meio da Matriz de Responsabilidades, assinada em 2010, exigiu que o Brasil tomasse medidas de prevenção mais eficientes e eficazes referente ao monitoramento e controle dos fluxos sociais (Termo, 2010).
Para tanto o governo repassou um montante de 780 milhões de reais para a integração de instituições e sistemas, com o foco no processo de securitização por meio da tecnologia de vigilância eletrônica (Portal da Copa, 2010). Esses recursos destinava-se a criação de Centos Integrados de Comando e Controle em todas as cidades sedes do megaevento.
Apesar de ter sido uma exigência da FIFA que os estádios seguissem o padrão de vigilância internacional, o governo do estado de Pernambuco decidiu ampliar o escopo do CICC-PE utilizando-o para além da Copa do Mundo FIFA 2014, com o intuito de tornar esse aparato tecnológico um divisor de águas para a transformação da capital pernambucana em uma das cidades mais vigiadas e controladas do Brasil quiçá do mundo. Essa postura do governo de Pernambuco gerou o interesse de utilizar o CICC-PE como objeto empírico desta pesquisa.
Diante da emergência de novas tecnologias de vigilância eletrônica e incorporadas nas cidades, este trabalho intencionou através de um estudo etnográfico, responder a seguinte pergunta de pesquisa Como ocorrem às articulações entre os sujeitos envolvidos no processo de construção do Centro Integrado de Comando e Controle?
Para se acessar essa articulação e o processo de significação entre esses atores a presente pesquisa se baseou na Teoria do Discurso (TD) desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. A TD enfatiza o político enquanto ontologia do social, e a linguagem como epistemologia, expondo a articulação política e social. Laclau e Mouffe (2001) argumentam que o uso da linguagem, assim como a criação de significados, é um fenômeno social, resultado das articulações existentes e inerentes ao contexto. Para tanto o objetivo geral foi compreender as comunidades da fala em torno da construção do CICC-PE e como elas se articularam.
As práticas articulatórias buscam organizar o discurso em torno de uma série de pontos nodais, os quais cumprem o papel de significados mestres capazes de unificar uma superfície discursiva entrelaçando uma variedade de identidades diferentes em torno de um “nó” de significados (Torfing, 1999).
A pesquisa foi de cunho qualitativo, e a escolha metodológica seguiu o caminho da etnografia. Ela foi utilizada neste estudo como um instrumento para a compreensão das relações comportamentais e sociais dos sujeitos envolvidos neste processo. Com isso foi seguida a orientação de Hymes (1974), Gumperz (1982), Leão e Mello (2007) entre outros autores.
Hymes (1974) argumenta que as pesquisas em sociolinguística pressupõem e necessitam de identificar o como e o quem verbal e não verbal nas relações sociais. Com isso, este tipo de pesquisa está interessada nas relações das variáveis linguísticas que só um membro de um grupo social dispõe. Gumperz (1982) defende que, a sociolinguística requer uma investigação da linguagem social de cada grupo em particular.
Pode-se dizer que a sociologia interpretativa, principalmente em vertentes como o interacionismo simbólico e a etnometodologia são fundadas na análise linguística do contexto e do pensamento e por meio das interações sociais. Pode-se com isso compreender a cultura de uma comunidade de fala. Este termo foi teorizado por Hymes (1974) ao afirmar que cada grupo social constitui suas próprias regras de linguagem compartilhadas entre si.
Esta pesquisa etnográfica foi realizada na gerencia geral de projetos especiais do estado de Pernambuco (GGPE), responsável pelo desenvolvimento e implantação do CICC-PE. A GGPE esta localizada no prédio da secretária de defesa social (SDS). Oito servidores trabalham em período comercial (das 08:00 da manhã as 18:00 hs todos os dias da semana, exceto sábado e domingo), sendo cinco militares (o gerente geral, o responsável direto pelo projeto do CICC-PE, e três assistentes), uma delegada da policia civil (responsável pelas ações civis do CICC-PE), uma estagiaria e uma secretaria.
Portanto, essa pesquisa se enquadra na classificação de observação participante. Saville-Troike, (2003) argumenta que a observação participante é uma das técnicas mais comuns para um estudo etnográfico. O autor afirma que os etnógrafos podem por meio da observação participante compreender a cultura e seus efeitos no comportamento dos integrantes desta comunidade.
De forma sintética foram identificadas três ações de significação principais. Significação federal, estadual e municipal. As instituições federais apresentaram-se ausente deste processo, pois na maioria das reuniões em que eram convocados não mandavam seus representantes, e quando alguém os representava era uma pessoa sem poder de decisão, ou seja, sem força discursiva. Percebeu-se nas reuniões, nos encontros e nos grupos sociais, que existiram poucos momentos de significação, das interações com as instituições federais por meio de expressões como: "eu não fui informado" "vocês fizeram tudo sozinhos" "se der tudo errado to fora disso". Evidenciando-se duas posições articulatórias claras, a primeira é que os atores discursivos das instituições federais não interferiram na significação do CICC-PE. A segunda, um pouco mais complexa, é levada para o contexto de disputa de poder entre as instituições que estão significando o CICC-PE como um instrumento de interesse do então Governador Eduardo Campos.
As instituições estaduais apresentaram-se como as detentoras temporárias do processo de significação do CICC-PE. Fato este decorrente do interesse pessoal e político do governador em transformar o CICC-PE uma referencia no Brasil, inserindo com isso mais recursos e poder para que os “seus” atores discursivos assumissem este processo. Foram as instituições estaduais, mas precisamente os militares, os responsáveis em conceituar, estudar e compreender este novo conceito de vigilância eletrônica que se apresentava como uma saída rápida e eficiente para a redução da criminalidade e violência urbana. Nesse sentido, tornou evidente que o processo de significação estava nas mãos deste sujeito discursivo.
Porém o jogo discursivo é muito complexo e houve uma intensa disputa de poder entre as diversas instituições estaduais, evidenciado por diversas expressões durante a coleta dos dados, tais como "nós fizemos isso antes", "nosso projeto é o melhor", "fomos os primeiros a fazer isso no Brasil".
Já as instituições municipais, participaram de muitas reuniões para expor seus dados em relação ao funcionamento do CICC-PE, mas sua função não ultrapassou a esfera técnica. Apesar, de sua relevância quanto à construção do banco de dados do CICC-PE eles não tinham poder de decisão. Este fato gerou algumas disputas especialmente entre a SAMU (Instituição municipal) e os Bombeiros (Instituição estadual). Fato evidenciado, quando esses os grupos estavam presentes em um mesmo evento e dialogando sobre o projeto do CICC-PE, usavam expressões como "isso é um exagero", "deveriam está gastando em educação", "coisa desnecessária".
Por meio da síntese das análises, evidenciou-se que o ambiente em que o CICC-PE estava inserido era rígido e sua comunidade de fala continha, características de formalidade e hierarquia. Entretanto, tais fatores não foram o suficiente para manter a aparente cadeia de equivalência perfeita, como indicava os primeiros contatos, mostrando a verdadeira face de um intenso jogo por poder e dominação entre as principais instituições que significaram neste processo. Apesar de muito velado, foi intenso, só identificado e analisado após vários meses de interação com os grupos discursivos relevantes.
Palavras-chave: vigilância, etnografia, Copa do Mundo 2014, Centro Integrado de Comando e Controle de Pernambuco.
Referências:
Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 dez. 1970. São Paulo: Edições Loyola.
Graham, S. (2006). Surveillance, urbanization, and the US "Revolution in Military Affairs. In Lyon D (Ed.). Theorizing surveillance: panopticon in beyond. William Publish: Portland.
Gumperz, J.J. (1982). The sociolinguistics of interpersonal communication. In: Gumperz, J. J. Discoures Strategies (p.9-37). Cambridge: Cambridge University Press.
Hymes, D. (1974). Why linguistics needs the sociologist. In Hymes, D. Foundations in sociolinguistics: an ethnographic approach (p.69-81). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Laclau, E. & Mouffe, C. (2001). Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (2a ed.). London & New York: Verso.
Leão, A.L.M.S. & Mello, S.C. (2007). Apresentando a etnografia da comunicação ao campo da pesquisa em Administração. Anais do Encontro de Ensino e Pesquisa em Administração e Contabilidade.
Lyon, D. (2007). Surveillance studies: an overview. Cambridge UK: Polity Press.
Lyon, D. (2003). Surveillance after September 11. Cambridge UK: Polity Press.
Portal da Copa Anexo de segurança pública da matriz de Responsabilidade, 2010. Recuperado em 20 de dezembro de 2012 de http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/11192012_anexo_f01_base_integracao.
Saville-Troike, M. (2003). The ethnography of communication: an introduction(3a ed., p.1-40) Malden: Blackwell Publishing.
Termo. (2010). Matriz de Responsabilidades.Recuperado em 01 de dezembro de 2012 de http://portal.esporte.gov.br/futebolDireitosTorcedor/copa2014/compromissosCopa2014.jsp.
Torfing, J. (1999) New Theories of Discourse: Laclau, Mouffe and Zizek. Oxford: Blackwell Publishers.
Virilio, P. (2012). Administration of fear. Semiotext (e) Intervention series. London: 2012.