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Henrique Z.M. Parra
O que podemos aprender com tecnoativistas ou hacktivistias, grupos ou movimentos que atuam em temas relacionados à tecnopolítica, política informacional, democratização do acesso à informação e do conhecimento? Que elementos compõem sua cultura epistêmica, suas práticas e modos de organização? Quais as convergências e possíveis protocolos de colaboração que podemos desenvolver entre coletivos hacktivistas/tecnoativistas e pesquisadores/cientistas?
Tal pergunta foi primeiramente elaborada pela percepção, originária da própria experiência do pesquisador, de que muitos dos problemas enfrentados pelos tecnoativistas eram semelhantes às dificuldades encontradas por cientistas envolvidos em projetos de ciência cidadã em que a plena abertura dos dados e a efetiva participação do público (cientistas ou não) eram condições necessárias à realização das investigações. No decorrer do processo outras razões se mostram relevantes para justificar este percurso investigativo.
Em primeiro lugar, argumentamos que a observação dos tecnoativistas pode indicar de maneira mais aguda os dilemas sociopolíticos produzidos pela crescente mediação das tecnologias digitais. Tais grupos são mais sensíveis às especificidades sociotécnicas dos dispositivos de comunicação - características praticamente invisíveis à maioria dos usuários – e também aos efeitos dos poderes dominantes. Afinal, sua atuação crítica na zona fronteiriça do avanço tecnopolítico torna-os mais expostos a essas dinâmicas.
Ao nos aproximarmos da experiência e dos conhecimentos desses grupos, temos em mente a noção de saberes situados/localizados proposta por Donna Haraway. Reconhecemos, evidentemente, as críticas e os possíveis antídotos elaboradas pela própria autora para esta posição cognoscente:
As perspectivas dos subjugados não são posições "inocentes". Ao contrário, elas são preferidas porque, em princípio, são as que tem menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento. Elas têm ampla experiência com os modos de negação através da repressão, do esquecimento e de atos de desaparição - com maneiras de não estar em nenhum lugar ao mesmo tempo que se alega ver tudo (Haraway, 1995, p. 22).
Permitimo-nos, portanto, abordar os tecnotivistas como os experts na medida em que uma das características fundamentais da prática tecnoativista e dos hacktivistas é a valorização do conhecimento adquirido mediante a experiência (sentido original da palavra expert) e que está permanentemente sendo colocado à prova na prática cotidiana. Dessa forma, consideramos os grupos tecnoativistas como co-pesquisadores. Tal posicionamento é uma exigência simultaneamente metodológica e ética-política.
Os problemas relacionados às condições de produção e acesso à informação em redes cibernéticas e seus efeitos surgem como centrais tanto na prática de pesquisadores como na dos tecnoativistas: como delimitar as fronteiras entre informação pública e privada; como estabelecer protocolos que potencializem a cooperação, a partilha e livre uso dos dados, a interoperabilidade; como criar processos colaborativos e evitar relações de exploração (material ou simbólica) entre os partícipes; como potencializar processos deliberativos mais participativos, confiança, transparência e apropriação coletiva das informações e ao mesmo tempo garantir a privacidade? Dilemas que apontam para um desafio político comum mas que são percebidos de maneira distinta por cientistas e tecnoativistas.
Em segundo lugar, a possibilidade de práticas de investigação colaborativa entre cientistas e ativistas em contextos de comunicação digital pode indicar a criação de novos caminhos metodológicos. Como diversos autores analisaram nossas sociedades lidam com problemas complexos relacionados aos novos processos e produtos oriundos da tecnociência que inauguram desafios imprevistos para a reflexão política. A produção científica e tecnológica é convocada a se democratizar, as escolhas públicas são tensionadas por discursos de experts e contra-experts, e os cidadãos comuns são instados a dominar um conhecimento que o torne capaz de interferir nessas decisões sob pena de aumentar uma alienação política já abissal.
Estamos, todavia, muito distantes de uma participação democrática efetiva nas sociedades contemporâneas. Nesse sentido, acreditamos que a investigação e o desenvolvimento de práticas colaborativas entre cientistas e tecnoativistas, pela natureza dos problemas que enfrentam, poderá contribuir para o desenvolvimento de protocolos metodológicos e ético-políticos relacionados às condições e efeitos do amplo acesso à informação em redes digitais.
Por fim, ao enfrentarem desafios que, no âmbito de suas práticas refletem problemas sociais mais amplos, a análise de suas experiências pode contribuir para uma melhor compreensão de problemas caros à sociologia da tecnologia e à sociologia política: relação entre tecnologia e democracia; relação entre conhecimento científico e extra-científico; relações entre conhecimento, economia e poder na contemporaneidade. Essas três razões conformam, evidentemente, um caminho de investigação alternativo em que os objetivos e hipóteses da pesquisa combinam-se à estratégia metodológica adotada.
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Em diferentes sociedades podemos estabelecer relações de interdependência entre os modos de organização social, as formas de produção/difusão de conhecimentos, as tecnologias de comunicação e as formas de exercício do poder que se configuram em cada momento histórico. Atualmente, no campo da produção/difusão de conhecimentos observamos mudanças radicais na relação com o saber, tanto na forma de acesso quanto nas próprias formas e locais de produção de novos saberes, em parte relacionadas à crescente mediação das tecnologias digitais. Simetricamente, também observamos no campo político profundas transformações nos modos de ação e mediação institucional, seja na prática de grupos ativistas, movimentos sociais ou mesmo em novas individuações coletivas e modos de subjetivação política que tem emergido.
A emergência de novas formas de produção de conhecimentos e ação coletiva através das tecnologias digitais em redes cibernéticas é um terreno em disputa. Através dessas tecnologias observa-se uma combinação de: participação distribuída em redes digitais; produção infinita de dados mediante rastreabilidade de toda interação em meios digitais; convergência digital; novas informações e conhecimentos produzidos. Todavia, tais dinâmicas são indissociáveis da formação do capitalismo informacional e da sociedade de controle.
A lógica da participação, presente de diversas formas na experiencia politica de diversas democracias contemporâneas, manifesta-se de diferentes maneiras nas práticas de produção colaborativa, seja no âmbito da ciência cidadã/amadora, como nas dinâmicas sociais cotidianas cibermediadas. Frequentemente, porém, esta participação é reduzida ou transformada num modo de governo, forma de condução da vida (biopolítica). Como fator complementar, não podemos perder de vista que a mediação tecnológica está muito concentrada nas mãos de corporações privadas. Recentemente, observamos como a colaboração estatal-corporativa serviu para a expansão da vigilância e gestão populacional em escala planetária. Da mesma forma como nos séculos XVIII vimos o surgimento de novas ciências (epidemiologia, economia politica...) que se combinaram a novas formas de governo, hoje estamos diante de novas formas de conhecer que ensejam novas formas de governo e controle social.
Ao descrever algumas características que possam compor uma gramática comum de um conjunto de práticas tecnoativistas, nosso objetivo mais amplo é apreender as reconfigurações entre as dinâmicas de autonomia e resistência face às novas formas de sujeição social e servidão maquínica. Portanto, ao investigarmos as políticas de informação e as práticas de comunicação de grupos tecnoativistas, pretendemos interrogar as possibilidades e limites para a produção de conhecimento no campo das ciências humanas através das tecnologias digitais. Como delinear a tênue fronteira entre as humanidades digitais, a engenharia social, o capitalismo cognitivo e a formação da sociedade de controle?
Palavras-chave: ciência cidadã, tecnopolítica, cultura epistêmica, hacker, conhecimento.