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Felipe Villela de Miranda
Mais da metade da humanidade vive em centros urbanos. Esta constatação fortalece a ideia de que a superdemanda sobre os serviços públicos aumenta a importância da infraestrutura como condição para viabilizar a vida nas cidades. O Banco Mundial, interessado em direcionar a produção do espaço urbano, sugere soluções técnicas e científicas para aprimorar gestão e planejamento: a incorporação de tecnologias de informação e comunicação ao cotidiano das cidades seria a resposta para o caos. Neste discurso, o monitoramento digital do trânsito, da meteorologia ou dos cidadãos, por exemplo, criaria o que se popularizou mundo afora como “cidades inteligentes”. Multinacionais de Tecnologia da Informação (TI) como IBM, Cisco e Microsoft já prestam serviços “inteligentes” para cidades no Brasil. Só no Rio de Janeiro, os gastos com a IBM cresceram 1.180% desde que a campanha IBM Smarter Cities foi lançada, em 2008.
Mas, por que empresas de TI miram agora as cidades?
A importância das tecnologias de informação e comunicação (TICs) para o sistema produtivo mundial e o "boom" de cidadãos conectados permitiram uma explosão da concentração de capital e poder nas mãos das empresas fornecedoras destes serviços e produtos. No entanto, também promoveram o surgimento de novas empresas de tecnologia, que acirraram a disputa por consumidores. Para David Harvey, este é um processo típico do sistema capitalista, que tende a crises periódicas de sobreacumulação. Diante de um mercado mais competitivo e da busca incessante por novas oportunidades para investimentos lucrativos do capital acumulado, tornou-se necessário abrir novas frentes de negócios. O crescimento exponencial dos dados produzidos no sistema global de informação digital foi então o caminho escolhido pelos principais "players" globais de TI. Fortaleceram-se as análises que extraem sentido de dados dispersos - o Big Data - tecnologia que viabilizou o surgimento de uma série de ferramentas digitais para a gestão de serviços específicos para as cidades.
Para que as empresas de TI conseguissem intensificar a reprodução do seu capital no espaço urbano, fez-se necessário intervir materialmente na cidade, equipando o espaço construído com sensores e câmeras para, por exemplo, coletar informações sobre clima, trânsito ou segurança. Esses dados podem ser conduzidos, através das redes de TIC, até um servidor com softwares desenvolvidos especialmente para organizar essas informações e devolver "soluções inteligentes" para os cidadãos. Todas essas etapas podem ser executadas pelas chamadas empresas de TI. Com exceção das obras, que são atribuição dos governos.
Os governos locais precisam, então, ser convencidos a assumir o papel de agenciadores do mercado de TI, na medida em que possuem a atribuição de intervir no espaço urbano. Assim surge uma campanha global para a promoção de tecnologias inteligentes, empreendida por instituições e empresas multinacionais com foco nos gestores urbanos. Uma coincidência importante na estratégia de vendas de multinacionais como IBM e Cisco é a orientação das campanhas publicitárias diretamente para governos locais. O capital dessas empresas, mobilizado internacionalmente, é reproduzido de maneira seletiva nas cidades que financiam estes grupos privados por meio da contratação dos seus serviços, ao mesmo tempo em que os governos passam a equipar o espaço urbano conforme as diretrizes do Banco Mundial, na esperança de atrair investimentos de outros grupos de TI. Esta é uma característica do empreendedorismo urbano, um modo de gestão que tende a reproduzir localmente estratégias consideradas bem sucedidas em outras partes do mundo, em virtude da coerção promovida pela competição entre as cidades por investimentos privados.
A atuação das empresas de tecnologia passa, portanto, a introduzir novos contornos aos projetos de intervenção urbana. A definição trabalhada pela geógrafa Isabel Alvarez, quando se refere especificamente a intervenções no espaço intraurbano, sugere que urbanismo é “a mediação necessária para transformar o já produzido em novo momento de reprodução do capital”. Surgiria, então, um novo urbanismo "high-tech", sintoma da estratégia de mercado das empresas de TI. Com agente tão poderoso mirando as cidades, a governança urbana, entendimento de governo que inclui o conjunto de agentes sociais (públicos e privados) que de fato organizam o espaço urbano, ao que tudo indica, precisará ser compartilhada com os fornecedores globais de TI.
O exemplo vivo é a cidade do Rio de Janeiro, que desde 2012, o discurso de cidades inteligentes apareceu no Plano Estratégico Municipal (2013-2016). Hoje o Rio de Janeiro investe neste mercado, sob o comando do prefeito Eduardo Paes (PMDB-RJ), que declarou em 2014[1]: "desde moleque economizava meu dinheiro para comprar o computador de última geração. Não tem mulher que é tarada por sapato? A minha tara é a tecnologia". Não por acaso, um dos programas que mais receberam investimentos no seu primeiro mandato como prefeito (2009-2012) foi o Rio - Capital da Ciência, Tecnologia e Inovação, vinculado à Secretaria Especial de Ciência e Tecnologia (SECT) do município.
Uma das principais realizações deste programa foi o Centro de Operações Rio - COR, construído por exigência do Comitê Olímpico Internacional para a cidade sediar os Jogos de 2016. A IBM foi contratada para elaborar a tecnologia do COR, cuja intenção é centralizar informações dispersas em diferentes órgãos públicos e sensores de monitoramento espalhados pela cidade (como câmeras de trânsito e pluviômetros) para possibilitar, conforme discurso da própria IBM[2], a visualização integrada de dados e agilizar a resposta da prefeitura a problemas como enchentes, deslizamentos, bloqueios no tráfego e emergências policiais, entre outras situações de crise.
Desde 2013, o COR utiliza ferramenta para o monitoramento de redes sociais desenvolvida pela SAP – outra multinacional de TI. A intenção, segundo os fornecedores do serviço, é possibilitar que a prefeitura acompanhe o “sentimento do cidadão”. Este tipo de pesquisa é, habitualmente, empreendida por profissionais de marketing para avaliar o desempenho de produtos ou a imagem de políticos e programas de governo. Como a prefeitura do Rio de Janeiro não divulga as análises feitas, cabe a pergunta: o monitoramento de redes sociais pelo governo tem interesse público ou privado, isto é, o foco principal seria avaliar o desempenho de programas públicos ou simplesmente a popularidade do prefeito?
Ainda: quais os efeitos do "urbanismo inteligente" no direito à privacidade dos cidadãos?
A principal ferramenta do COR é um mapa georreferenciado com diversas camadas. Nele é possível selecionar uma região da cidade e consultar informações tão diversas como o perfil da população residente (número de idosos e crianças), incidência de obras, eventos públicos cadastrados (por exemplo, um bloco de carnaval), além de localizar as câmeras de vigilância disponíveis. Segundo o assessor especial do COR Alexandre Cardeman, por meio das câmeras a prefeitura pode calcular o número de pessoas por metro quadrado e ainda identificar estas pessoas. Além disso, também é possível isolar todos os tweets que são feitos daquele local para saber do que as pessoas ali reunidas estão falando. “Fundamental para fazer uma operação, dentro de um evento, por exemplo ”, diz Cardeman [3].
Com a ubiquidade de tecnologias de informação e comunicação no espaço urbano integradas ao trabalho de processamento e análise de dados realizados por empresas de tecnologia da informação, os habitantes de cidades inteligentes tornam-se "cidadãos sensores", enredados em um discurso que relaciona smart cities, smartphones e smart citizens. O controle ampliado do espaço urbano torna-se, neste sentido, controle da vida cotidiana dos cidadãos.
A estratégia empreendedora da prefeitura inclui a intenção de gerar valor com os dados que reúne sobre a cidade. A partir do desenvolvimento de ferramentas para análises de bases de dados heterogêneas (o big data analytics), os dados reunidos pelo governo passam a ter um grande valor potencial. Estas informações podem servir como matéria-prima para empresas de tecnologia que trabalham com processamento de informação, para os mais diversos fins. Análises desse tipo permitem, por exemplo, determinar o preço de um imóvel comercial na cidade a partir da consideração da quantidade de pessoas que passam por ele no caminho para o trabalho, e em qual horário há maior fluxo [4].
Há um movimento mundial, capitaneado pelas grandes empresas de TI, para pressionar governos a disponibilizarem, de maneira gratuita, os dados que reúnem, considerados um bem comum. A oferta desses dados brutos e o seu baixo custo de acesso impactam de forma determinante o preço final da informação trabalhada pelas empresas de tecnologia, assim como o preço de um produto industrializado tradicional depende do custo e disponibilidade de matéria-prima. A redução do custo de produção a partir da espoliação dos dados públicos, por serem bens oferecidos gratuitamente, configura o que David Harvey chama de acumulação via espoliação. Para atender a essa demanda do mercado de TI a prefeitura do Rio de Janeiro criou o portal Riodatamine. Por meio dele é possível acessar gratuitamente dados brutos da cidade, com a condição de que quem acessa disponha de tecnologia suficiente para organizá-los de maneira útil. Este é o ciclo que transforma os dados da cidade em informação com valor de uso e troca.
Nota-se que, ao contrário do discurso inteligente das multinacionais de TI, a cidade high-tech não traz apenas benefícios, na medida em que o urbanismo inteligente reproduz formas de gestão e planejamento que privilegiam interesses privados sobre públicos. Nesse sentido, a tecnologia é considerada apenas instrumento, sem a capacidade de solucionar os mais graves problemas urbanos, como exclusão social e desigualdade espacial. Esta pesquisa levanta a hipótese de que a implantação de tecnologia no espaço urbano, como sintoma da intensificação da reprodução do capital das empresas de TI por meio da urbanização, acentue a concentração de capital e poder político dos grupos dominantes.
Utilizamos como metodologia a abordagem proposta pelo geógrafo Roberto Lobato Corrêa, que destaca a ação decisiva de empresas multinacionais na produção do espaço urbano, complementada pela abordagem funcional do urbanista Peter Hall, que sugere acessar a dinâmica urbana através das estratégias espaciais e comerciais das empresas protagonistas do fluxo de capitais globais.
A intenção deste trabalho é apresentar as estratégias deste agente urbano em ascensão, para compreender em que medida as empresas de TI influenciam o planejamento e a gestão de suas cidades/clientes.
Afinal, as “cidades inteligentes” são inteligentes para quem?
[1] “O prefeito digital”, Revista Info Exame - Inovação, nº 337, São Paulo, jan/2014.
[2] “IBM Intelligent Operations Center for Smarter Cities”, EUA, 2012.
[3] Palestra Alexandre Cardeman publicado em 23/04/2013 por Google Atmosphere Maps
http://www.youtube.com/watch?v=Du3GhKEbNL8
[4] A ferramenta Urban Network Analysis, criado pelo City Lab Form no MIT, EUA, é um plugin para o Arcgis que utiliza dados de uma cidade, provenientes de diferentes fontes, para determinar a relevância ou valor de uma localização urbana a partir parâmetros como acessiblidade, proximidade e centralidade.
Palavras-chave: cidades inteligentes, urbanismo, big data, controle, empreendedorismo urbano.