Convergências entre a produção da informação em C&T e a tecnopolítica: apontamentos para a sociedade de controle

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Bruno M. Nathansohn

Neste trabalho, pretende-se fazer uma análise histórica sobre uma possível convergência operada entre a produção da informação em C&T e a crescente presença das agências de inteligência em âmbitos decisórios governamentais. Entende-se que, apesar da perenidade verificada pelas atividades de espionagem desde tempos imemoriais, determina-se como divisor de águas a Guerra do Vietnã (1965-1975), considerando-o como o evento mais marcante e flagrante dos conflitos periféricos conduzidos pelos dois dominantes blocos de poder no período da Guerra Fria (1947-1991).
A preocupação da comunidade científica, mas não só restrita à ela, foi em relação à forma de sistematizar e controlar essa enorme produção informacional desencadeada pelo fim da 2ª Guerra. Foi assim que, ao longo da Guerra Fria, foram implantados institutos estatais dedicados à organização da informação, a partir da sistematização de dados sobre a literatura científico-tecnológica. O objetivo dessas instituições era dar suporte à estratégia do Estado em vários setores, principalmente àqueles relacionados à infraestrutura produtiva, ao desenvolvimento econômico e à segurança e defesa militares (Albagli, 2009).
Nesse sentido, conduz-se à uma análise que posiciona a informação como um elemento central da lógica de poder. Informação como uma construção social e política, de acordo com a área da Ciência da Informação, simultaneamente à noção de recurso de poder, sob a lógica da Ciência Política. Portanto, apresenta-se um trabalho interdisciplinar, considerando temas como: sistemas de informação; estratégica militar; segurança internacional; sistemas de vigilância; tripé “inteligência-comando-controle”. Privilegia-se, assim, uma abordagem macro-política calcada nas ações de informação para o monitoramento, comando e controle, considerando o contexto geopolítico, primeiramente contra o terrorismo, e depois contra qualquer atividade que ameace desestabilizar a integridade territorial do Estado e da sociedade.
As chamadas “ações de informação” são, segundo Gernot Wersig (1985, p.18 apud González de Gómez, 1999, p.17) “a intenção de um ator em alcançar alguma coisa, e essa intenção faz essa ação ter um significado [...] ação é o resultado da interação de muitos diferentes componentes [...]” [Tradução nossa]. Considera-se que, neste período, o estreitamento da convergência entre gestão pública em segurança e defesa, e a aplicação extensiva das tecnologias da informação e da comunicação (TIC), impõe um processo de avaliação dialética que considere as ações de informação institucional como resultados simultâneos de fatores políticos e tecnológicos.
Os EUA, como única potência global, passaram a investir em novos armamentos e em ações de informação relacionados à vigilância, à espionagem, e para suprimir protestos internamente. E essa tendência se espraiou como rastilho de pólvora aos demais Estados, através de políticas de informação na área de segurança. Não existindo, por parte dos recentes governos, qualquer preocupação em discernir a defesa militar, portanto contra inimigos de fato, de atividades de monitoramento e controle, que atingem direitos de privacidade de indivíduos, dentro e fora do território estadunidense. Dessa forma, a face aparente dessas políticas são os crescentes investimentos em segurança e defesa cibernética. Por outro lado, a face oculta são as atividades de vigilância, sendo as mais recentes operadas em 2013 pelos EUA contra potenciais “ameaças”, através da Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês). Atividades que foram denunciadas pelo ex-técnico de operações de inteligência, Edward Snowden.
Define-se informação como um recurso de poder, inserido como dispositivo da administração pública para o controle (Foucault, 1997; Deleuze, 1992). Traduz-se, portanto, como um elemento que transpassa e impacta os modelos tradicionais de governança e de governabilidade estatais (Braman, 2004). Objetiva-se, com isso, caracterizar a informação em segurança como um dos pilares constitutivos daqueles conceitos, considerando as exigências da previsibilidade e da calculabilidade racional-burocráticas (Weber, 1982).
Para tanto, a informação como recurso de poder será vinculada à construção social e dialética, que desenvolve através das perspectivas de Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze, entre outros pensadores. Uma dialética que aponta para a emergência e o fortalecimento de “dispositivos de segurança”, como salienta Foucault (1997), ao mesmo tempo em que localiza esses dispositivos com mais força no habitus, como parte da fórmula que resulta na prática das funções soberanas do Estado, como defendido por Bourdieu (1996). “[…] Bourdieu sees power as culturally and symbolically created, and constantly re-legitimised through an interplay of agency and structure. The main way this happens is through what he calls ‘habitus’ or socialised norms or tendencies that guide behaviour and thinking”. (Wacquant, 2005, p.316, cited in Navarro, 2006, p. 16).
O Estado, como ator principal em meio a outras estruturas de poder que com ele se inter-relacionam em dinâmicas de aproximação e de ruptura. Foucault identifica que esse poder não é uma manifestação própria da teoria política, mas está relacionado à prerrogativa das tecnologias de poder disciplinar que se espraiam de maneira “ascendente e descente” (Foucault, 1997). Esse é um processo ao que autor denomina de “racismo de Estado”, ligado à prática da guerra e, portanto, à noção de soberania. E não à toa, em sua direção descendente, resulta na polícia.
Cria-se, uma técnica disciplinar que será marcante e definidora do modus operandi das tecnologias de poder. Fala-se, em tecnologias de poder, enraizada na lógica disciplinar, mas mais profundas e traduzidas por critérios de medição técnico-científica, possibilitando dar previsibilidade ao pensamento e às ações do homem vivo (da espécie humana).
Neste sentido, o Estado é apresentado por Bourdieu como “um x (a ser determinado) que reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da população correspondente” (1996, p.95). Traduz-se também como “um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor de informação…”
Na atualidade, reservam-se outros modelos de controle e outras formas de pensar a soberania da vida sobre a disciplina e o controle das bio-regulações do Estado, de seus órgãos, e do mercado. Mecanismos e regulações que se potencializam com o advento da globalização técnico-info-comunicacional, materializada pela Internet. Vida e morte, calcadas no medo e no terror na política (Bignotti, 2014; Arendt, 2002) são elementos que fazem parte do campo político, deles dependendo toda a lógica de poder estabelecida, que legitima, num primeiro momento, o próprio poder político do soberano.
Foucault orienta sua análise no sentido das técnicas de poder político, mais do que na teoria política, identificando os procedimentos racionais “pelos quais assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais” (Foucault, 2005, p.288), por meio de mecanismos disciplinares. A construção de sistemas tecnológicos de trabalho dependiam da vigilância, dos procedimentos hierárquicos, da inspeção, da elaboração de relatórios que pudessem registrar padrões facilmente classificáveis. Todos esses mecanismos carregavam a técnica disciplinar.
O poder constituído se aferra a mecanismos de mensuração como a estatística (Estadística, em espanhol) e pesquisas relativas às características demográficas, realizando um mapeamento dos “fenômenos de controle” (Foucault, 2005, p.290). Existe nesse processo algo endógeno, típico da espécie humana, que se manifesta na massa, e que precisa ser minimizado sob o risco de se tornar uma endemia, ou seja, de se tornar permanente. Traçando um paralelo com as doenças, o autor remete aos perigos em manter determinada situação sem um tratamento normalizador, que impeça ao máximo a debilidade, a insegurança, a instabilidade, e, por fim, a incerteza.
Numa perspectiva diferente da abordagem de Foucault, que enxerga um poder pulverizado entre diversos atores políticos, as tecnologias de datificação identificadas por Meyer-Schönberger e Cukier (2013) é uma realidade historicamente construída com o objetivo primeiro de padronizar, medir e controlar comportamentos da natureza. Essas técnicas, associadas ao pensamento positivista, são aplicadas no campo social para o controle. O que ganha potencialidade, por meio das novas tecnologias da informação e da comunicação digitais, e origina-se das ciências duras, como “semióticas assignificantes” (Lazzarato, 2006), que passam a ser aplicadas pelas ciências sociais, de forma modular. Aponta-se, dessa maneira, para novas tecnologias que permitem uma mudança da noção de disciplina dos corpos alheios para a noção de controle dos corpos e da mente, de forma consentida, mas muitas vezes inconsciente, como salienta Gilles Deleuze (1992).
Ao observar que existe uma transcendência do agir disciplinar porque as próprias tecnologias não se restringem mais àqueles espaços, Deleuze diz que, a partir desse momento, “sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser” (1992, p.219). A atualidade reserva outros modelos de controle e outras formas de pensar a soberania da vida sobre a disciplina e o controle das bio-regulações do Estado, de seus órgãos, e do mercado. Mecanismos e regulações que se potencializam com o advento da globalização técnico-info-comunicacional, materializada pela Internet.
Ao mesmo tempo, Deleuze reconhece que Foucault apontou para essa mudança de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle, sugerindo que novas forças se anunciavam e poderiam modificar o contexto espaço-temporal nas quais se aplicam. Hoje, o monitoramento se faz presente no cotidiano, de forma sutil, independente do espaço, e é muito mais eficaz do que as tecnologias de controle centradas num espaço definido. A absolutização propiciada pela lógica das bio-regulações liberais dependem agora do aparato das TIC para promover uma “modulação universal” (Deleuze, 1992, p.222).
Faz-se presente na modernidade um novo espaço de trocas estruturado em rede, e imperceptível no cotidiano, como “formas ultra-rápidas de controle ao ar livre” (Deleuze, 1992, p.219). Assim, os dilemas impostos pelas relações de poder, ganham em potência na rede digital. Simultâneos aos objetivos do Estado, em sintonia com o mercado, em “datificar” a vida social como dizem Meyer-Schönberger e Cukier (2013), formas de participação, mobilizações e trocas econômicas emergem no cenário digital, transgredindo as diversas normalizações construídas ao longo dos séculos.
De certa forma, o controle seria um estágio superior desses mecanismos, em que o Big Data, por exemplo, aparece como instrumento necessário para que o poder constituído, na figura do Estado, de suas instâncias, e do mercado, possam exercer melhor esse controle. A predição proporcionada por essas tecnologias, e as redes sociais na Web talvez sejam o exemplo mais marcante, porque produz conhecimento, promovendo, consequentemente, sabedoria e clarividência.
O controle absoluto não se dá só por meio da datificação aplicada à localização das pessoas, mas vai além, e permite posicionar o indivíduo em um contexto espaço-temporal a partir de serviços interconectados. Esses serviços, ao contextualizarem o posicionamento das pessoas, possibilitam padronizar comportamentos para que o mercado possa oferecer outros serviços. Ou ainda, órgãos estatais podem se utilizar desses dados digitalizados para empreender programas de vigilância em massa, como vem sendo feito pelas agências de espionagem estadunidense e britânica, como ação de segurança e defesa preemptiva.
Dessa maneira, a interação operacional observada por Mayer-Schönberger e Cukier (2013), apesar de ser gerada por tecnologias desenvolvidas a partir de grandes sistemas, dos Big Data, e ser primordialmente definida pela estratégia do Estado, converge com a ideia de Foucault sobre uma pulverização do poder, por causa da potencialidade latente existente nesses registros maquínicos, e com Deleuze sobre o controle absoluto, no melhor estilo Minority Report .

Palavras-chave: big data, TIC, segurança, sociedade do controle, vigilância.