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Daniel Hora
As tecnologias difusas de telestesia, processamento e telecomunicação constituem a parafernália da experiência fenomenológica e social do mundo contemporâneo. Sua utilização é, no entanto, tão ambígua quanto o seu legado híbrido – de que fazem parte a pesquisa e desenvolvimento científico-militar e as adaptações aos usos econômicos e contraculturais. Esta genealogia impura fundamenta a existência de uma medialidade que tanto nos torna aptos a ampliar ao alcance planetário a escala de exploração e ação subjetiva a partir de uma base local, quanto nos transforma em objetos das forças de gerenciamento biopolítico reticular, articuladas fora do domínio acessível a contrapartidas de resistência e contestação efetivas.
Graças a esta dubiedade, a extensão sensorial pela qual observamos o mundo converte-se perversamente no mesmo meio pelo qual nos tornamos a cada passo mais visíveis, ainda que a contragosto. O que vemos é o que nos olha, não mais pela vitalidade latente dos artefatos discutida enquanto fenomenologia crítica do olhar pelo historiador da arte Georges Didi-Huberman (1998). Agora, o olho mágico tem via dupla graças à automação que media ou corporifica relações de poder na produção e fruição de artefatos culturais. A internet das coisas traz consigo os subterfúgios para o estabelecimento de uma operacionalidade panóptica pervasiva e não equitativa.
Com o avanço tecnológico, a crescente condição transacional de visibilidade é adotada em propostas de reflexão a cada dia mais relevantes no campo da arte hacktivista. Muitos projetos passam a se envolver no comentário e no combate contra as amarras de controle, bem como na defesa de práticas dissidentes e emancipadoras da subordinação opressiva. Alguns exemplos são a mídia tática do coletivo Critical Art Ensemble, a desobediência civil eletrônica do Electronic Disturbance Theater, a crítica sobre a obsolescência programada e os limites entre privacidade e publicidade por Lucas Bambozzi e à disrupção do comércio eletrônico por UBERMORGEN.COM e Mediengruppe Bitnik. Juntam-se a estes exemplos inúmeras ações de coletivos e espaços hackers que, embora não sejam proclamados com o propósito de inserção em circuitos artísticos, carregam abordagens poéticas para a heterotopia de zonas de contestação estabelecidas nas ruas e nas redes.
As realizações da arte hacktivista tentam suscitar o debate público e a reflexão individual sobre os caminhos da visibilidade. Em diferentes arranjos estéticos, é possível observar tendências que privilegiam o agenciamento multitudinário e o anonimato. Em outros casos, graus variados de transparência ou translucência (Bird, 2011) são articulados para a identificação daqueles que decidem promover a interferência, a pirataria e a contaminação como modalidades de resistência contrária ao controle protocológico embutido no próprio uso da tecnologia digital reticular (Galloway, 2004).
Para avaliar as implicações estéticas destas formas de dissidência artística, apresentaremos de início que tipo de produções podem ser levadas em conta, em contraponto à profusa extensão das atividades hackers (Wark, 2004) para além da discursividade mais próxima da arte. Em seguida, será necessário revisar o histórico cumulativo das lutas de emancipação contra o poder tecnocrático e corporativo, sobretudo no que diz respeito ao seus desdobramentos artísticos. Para isto, assumimos as guerrilhas semiológicas e a mídia tática como ponto de partida. Já o ponto provisório de chegada será o materialismo/realismo especulativo articulado tanto no pensamento (Bryant et al., 2011), quanto no fazer crítico (critical making) e na anarqueologia da mídia (Zielinski, 2008). Por fim, esse levantamento temporal embasará nossa análise a respeito dos graus de relevância dentro do espectro de proposições de in-visibilidade na arte, em suas variações do desvelamento à opacidade, implantadas conforme as diferentes posições de poder são inscritas nos códigos discursivos e performativos que se corporificam por meio da tecnologia.
Consideramos que o ativismo hacker na arte manifesta as implicações políticas da transição entre a escritura e o afeto. Sua participação neste fluxo reside na irrupção da diferença na relação código-imagem, entendida aqui como o fluxo de mão dupla entre programas e performances. A arte hacktivista lida com a multiplicidade, movendo-se por uma engenharia reversa de in/de/cisão de sentidos. Pois, ao lidar com a reserva de virtualidades e sua exploração factual em termos de linguagens, temporalidades e topologias híbridas, as poéticas de hacktivismo colocam em questão o alcance e os graus de conveniência da determinação (a decisão) dos usos e performances da tecnologia – a materialização ou corporificação do cálculo procedural. Agente de suspeição do que chega decidido com a tecnologia, a arte afirma-se também como poética política, ou est-ética, afeita à indecidibilidade (Derrida 1991) e contrária ao tecnodeterminismo.
Acreditamos que derivam da arte hacktivista práticas de resistência múltiplas e multitudinárias. Em vez de monolíticas, suas poéticas são heteróclitas e heterogenéticas, aderentes a diversas narrativas emancipatórias, o que a singulariza como vanguarda nômade, recombinante e rizomática, ou antivanguarda. Pois sua produção está menos interessada em estratégias utópicas e mais inclinada às táticas heterotópicas (Foucault, 2009) e circunstanciais de autonomias temporárias, mas recorrentes.
Inserida no contexto denominado como sociedade de controle por Gilles Deleuze (1992), a arte hacker demonstra que toda determinação de regras (e sua coerção) por meio da tecnologia sofre, de modo intrínseco, a concorrência da virtualidade da ruptura (a in-cisão) que refaz, pela interferência, a pirataria e a contaminação viral, as configurações do que é público e privado, precedente e futuro, contíguo e longínquo.
A arte hacker desvela a diferença produtiva na mediação tecnológica dos sentidos. Diferença que, no mesmo passo, decide o que disside, determina o que diverge (daí a cisão). Os sentidos que se articulam pela multiplicidade semântica: como a direcionalidade objetiva de toda produção (ação realiza para qual sentido), sua significação intersubjetiva (o sentido apreendido) e sua capacidade de afecção dos mecanismos de percepção (os sentidos do corpo e suas retenções e protensões em capacidades de animais e máquinas).
Podemos daí rever a caracterização apresentada da arte hacker como engenharia reversa da in/de/cisão dos sentidos mediados pela tecnologia. Pois o caráter precário e imediato das engenhocas dissidentes (e não Obras) da arte hacktivista reverte o engenho da destreza do fabricante e da operacionalidade eficiente do que é fabricado. Deste modo, a mediação tecnológica percorre sentidos diversos – é objetiva, lúdica, uni ou multissensorial, segundo a in/de/cisão que determina pela parcialidade das rupturas. Interessa portanto entender o que regula e o que possibilita a in/de/cisão.
Palavras-chave: estética, fazer crítico, in-visibilidade, mídia tática.
Referências:
Bird, L. (2014). Global Positioning: An Interview with Ricardo Dominguez. Recuperado em 30 de janeiro de 2014 de http://www.furtherfield.org/features/global-positioning-interview-ricardo-dominguez
Bryant, L. et al. (Orgs.) (2011). The speculative turn: continental materialism and realism. Melbourne: Re.press.
Deleuze, G. (1992). Postscript on the Societies of Control, 59 (Winter), 3-7.
Derrida, J. (1991). Margens da Filosofia. Campinas: Papirus.
Didi-Huberman, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34.
Foucault M. (2009). Outros espaços. In: Foucault, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema (p.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Galloway, A. (2004). Protocol: how control exists after decentralization. Cambridge: The MIT Press.
Wark, M. (2004). A hacker manifesto. Cambridge: Harvard University Press.
Zielinski, S. (2008). Deep time of the media : toward an archaeology of hearing and seeing by technical means. Cambridge: The MIT Press.