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SERGIO AMADEU DA SILVEIRA
O artigo trata da prática discursiva que legitima a chamada economia da vigilância. A observação da dinâmica do capitalismo informacional permite detalhar o fenômeno da observação permanente e constante das populações e dos indivíduos do ponto de vista das suas necessidades de reprodução em uma sociedade de controle (Deleuze). A observação mais fina e apurada do processo permite compreender que a economia da vigilância se estrutura em uma microeconomia da interceptação de dados e de intrusão em sistemas informacionais dos indivíduos que se articula com uma macroeconomia da atenção que objetiva a modulação de comportamentos em um cenário de comunicação em redes distribuídas.
O capitalismo informacional se estruturou sobre tecnologias cibernéticas, ou seja, em processos sociotécnicos de comunicação e controle. Neles, a comunicação é realizada pela ligação medida e posicionada entre entes comunicantes. A base da interação é o estabelecimento do contato entre os aparelhos utilizados na comunicação. Tal processo gera informações detalhadas sobre cada aparelho, computador, roteador e máquina que participou da comunicação. Essas informações que extrapolam o conteúdo comunicado nas redes cibernéticas são extremamente relevantes para o sistema capitalista e para o que Giorgio Agamben descreveu como politização crescente da "vida nua", em que os Estados gerenciam cada vez mais todos os aspectos da vida.
Como a comunicação nas redes cibernéticas ganha o cotidiano e torna-se elemento corriqueiro da relação entre amigos, parentes, entre colegas de trabalho e estudantes, ela torna-se uma grande fonte de valor. Dan Schiller ao analisar o mesmo cenário detecta que a dinâmica de apropriação de dados pessoais cresce como resultado de uma dupla pressão: econômica e política. A retroalimentação das tecnologias chaves que Manuel Castells descreveu, como sendo o motor da revolução informacional tem boa parte do seu combustível extraído da coleta, processamento e análise de dados dos ciberviventes.
Há na comunicação em redes digitais distribuídas uma grande inversão do ecossistema comunicacional quando comparada com o cenário anterior dominado pela comunicação de massas. A dificuldade de obter as atenções diante de bilhões de conteúdos gerados e compartilhados diariamente exige novos modos de proceder. O maior valor não parece estar no controle dos canais, mas no controle das atenções. A propriedade das redes físicas passa ser importante pelo volume de dados que pode gerar sobre o comportamento e sobre as práticas dos comunicantes. Desse modo, a dificuldade de atração dos afetos é tratada com a analise dos gostos, dos gestos, dos cliques, do tempo gasto, enfim é preciso obter dados para tentar atenuar a dispersão das atenções e modular os comportamentos.
Assim, diversas empresas utilizam as características das tecnologias cibernéticas para interceptar o fluxo de informações dos ciberviventes, para introduzir em suas máquinas programas que permitem analisar não somente sua navegação em rede, mas o que armazenam em seus computadores ou aparelhos móveis. Essa dinâmica é denominada microeconomia da interceptação e da intrusão. Ela gera uma massa de dados gigantesca que é analisada e permite gerar a organização de ondas de captura das atenções ou de modulação das opções de agir dos ciberviventes.
Nessa nova fase do capitalismo fortemente baseado em uma biopolítica da modulação há uma troca conflitiva entre a expansão da microeconomia da interceptação e da intrusão e o direito à privacidade. Quanto maior o terreno considerado indispensável para a garantia da privacidade menor será o campo de expansão da economia informacional. Assim, torna-se vital a produção de discursos que removam os entraves oriundos da doutrina liberal que ergueu o conceito de privacidade no campo dos direitos basilares da modernidade e um dos elementos constitutivos das democracias liberais.
A base da aceitação das tecnologias que garantem a intrusão e a interceptação de dados pessoais é sua enorme utilidade diante das necessidades colocadas socialmente pelo capitalismo. Mesmo partindo de outra base teórica, Anthony Giddens tratou do fenômeno da confiança que caracterizaria as sociedades modernas:
... a natureza das instituições modernas está profundamente ligada ao mecanismo da confiança em sistemas abstratos, especialmente confiança em sistemas peritos. Em condições de modernidade, o futuro está sempre aberto, não apenas em termos da contingência comum das coisas, mas em termos da reflexividade do conhecimento em relação ao qual as práticas sociais são organizadas. Este caráter contrafatual, orientado para o futuro, da modernidade é amplamente estruturado pela confiança conferida aos sistemas abstratos — que pela sua própria natureza é filtrada pela confiabilidade da perícia estabelecida. É extremamente importante deixar claro o que isto envolve. A fidedignidade conferida pelos atores leigos aos sistemas peritos não é apenas uma questão — como era normalmente o caso no mundo pré-moderno — de gerar uma sensação de segurança a respeito de um universo de eventos independentemente dado. É uma questão de cálculo de vantagem e risco em circunstâncias onde o conhecimento perito simplesmente não proporciona esse cálculo mas na verdade cria (ou reproduz) o universo de eventos, como resultado da contínua implementação reflexiva desse próprio conhecimento.(Giddens, 1991, p.77)
Partindo da noção de prática discursiva elaborada por Foucault, a exposição pretende organizar o quadro de regras e linhas do discurso considerado válido para tratar da relação entre cotidiano, economia e direito à privacidade. Buscará demonstrar que uma das maiores condutas do discurso dos capitalistas no mercado informacional passa pela naturalização dos processos de captura e interceptação dos dados pessoais, bem como, pela qualificação da inevitabilidade da transparência total dos ciberviventes diante dos benefícios oferecidos pelo capitalismo informacional. Foucault chamou de “discurso um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva" (Foucault, 1986, p.135). Prática discursiva está relacionada as regras do discurso e com aquilo que pode e não pode ser aceito como válido, diz respeito as relações que são suportadas e as que devem ser banidas ou consideradas estranhas diante da formação discursiva, que fundamenta os enunciados científicos. Por isso, a prática discursiva não pode ser entendida como uma mera expressão simbólica. Deve ser considerada no contexto das relações de poder que perpassam a história de uma determinada sociedade. Assim, a prática discursiva pode ser entendida como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1986, p.136).
Palavras-chave: economia informacional, capitalismo informacional, tecnologias, privacidade.
REFERÊNCIAS:
Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG.
Craig, T. & Ludloff. M.E. (2011). Privacy and Big Data. Sebastopol: O'Reilly Media.
Deleuze, G. (1992). Controle e Devir. In Conversações. São Paulo: Editora 34.
Deleuze, G. (1992). Post-Scriptum: sobre as sociedades de controle. In Conversações. São Paulo: Editora 34.
Foucault, M. (1977). Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.
Foucault, M. (1986). A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense.
Foucault, M. (1999). As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo : Martins Fontes.
Foucault, M. (1999).História da Sexualidade I: a vontade de saber (13a ed.) Rio de Janeiro: Graal.
Giddens, A. (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo: Edunesp.
Schiller, D. (2014). Digital Depression. Information technology and economic crisis. Urbana: University of Illinois Press.