Entre a participação cidadã e o controle em tempo real: visões sobre duas experiências de wikicidade

#42

Brenda de Fraga Espindula

Cidade ubíqua, cidade digital, cidade virtual e cibercidade são termos que procuram explicar a mediação entre tecnologia e espaço urbano e sugerem como, pelas tecnologias, pode-se perceber as maneiras de imaginar, conceber, representar e gerir as cidades. Por um lado, a cidade digital entendida como o conjunto de sistemas urbanos de informação baseados na Web e de comunidades virtuais sustenta-se na ideia de que a existência física da cidade por ser “colocada” no espaço virtual (Aurigi, 2008, p.5). Nesse sentido, pressupõe-se que é difícil perceber a fronteira clara entre os espaços físicos e virtuais, pois não são duas dimensões separadas e sim constituem-se enquanto partes de um continuum em um todo. De outro, a relação entre a cidade e o ciberespaço pode ser considerada como articulação entre dois espaços qualitativamente diferentes, já que, para além dos aspectos físicos e topológicos, as diferenças entre eles sustentam-se “em qualidades de processos sociais que se opõem” (Lévy, 1999, p. 195).
Pelo exposto, a conjugação entre o espaço virtual e o território das cidades pode ser investigada pela análise das tecnologias digitais que associam conteúdos informacionais a um local específico da cidade, podendo ser nomeadas de mídias locativas digitais. As wikicidades têm essa característica, pois são tecnologias que, por meio do mapeamento colaborativo, geram e compartilham informações sobre o espaço urbano. Tem-se certa intuição de que a ideia de wikicidade tem bases fundantes nos debates sobre cibercidade ou cidade digital, mas que a reflexão sobre a primeira tem certa especificidade por causa da evolução do tipo e da organização da informação computacional (muitos designam de Web 2.0), que talvez tenha alterado significativamente a formulação original de cibercidade/cidade digital. Essa evolução das arquiteturas digitais permitiu que os softwares funcionem pela Internet; que vários programas se integrem, formando uma plataforma; que o usuário tenham a possibilidade de participar na geração e organização das informações e que, mesmo o conteúdo não sendo gerado por ele, permite que seja enriquecido através de comentários, avaliação e personalização. O termo “colaborativo” tem sido associado a essas novas arquiteturas das tecnologias digitais.
O estudo exploratório que aqui se apresenta pretende comparar duas experiências de wikicidades, a Portoalegre.cc e a Real Time Rome, discutindo a concepção, os objetivos e o funcionamento de cada uma delas. Entende-se que as experiências podem ser comparadas pelo fato de que, mais do que serem mídias locativas digitais, elas desenvolvem tanto a função de mapeamento e monitoramento do movimento no espaço urbano, quanto a função de geolocalização, pela qual são agregadas informações digitais a mapas (podendo estas serem chamadas de geotag ou marcação geográfica).
Na plataforma Portoalegre.cc, cada um dos bairros de Porto Alegre são cartograficamente representados em um mapa digital: nele são publicados conteúdos relacionados a qualquer local da cidade, através de wikispots, isto é, marcações criadas pelo usuário para chamar atenção a algum aspecto que, para ele, mereça ser tornado público e que se transforme numa causa compartilhada. Além disso, ações como mutirão de limpeza, piqueniques coletivos e ocupação de parques públicos são desencadeadas a partir das causas compartilhadas na plataforma. O objetivo principal da Portoalegre.cc é se constituir enquanto um metamovimento, em que interfaces de participação política e cívica sejam criadas, fomentando a possibilidade de uma wikicidadania.
Já a Real Time Rome é uma experiência criada pelo MIT SENSEable City Lab, em parceria com a Telecom Italia, e apresentada na Bienal de Veneza no ano de 2006. Através dela, procurou-se entender a dinâmica de Roma em tempo real, a partir de dados agregados de celulares, ônibus e táxis em Roma. Conforme descrição do projeto, a Real Time Rome objetivou mostrar como a tecnologia pode tornar indivíduos mais informados sobre o desenvolvimento urbano e como ela pode reduzir ineficiências com vistas a um futuro urbano sustentável. A proposta dessa wikicidade centra-se na ideia de como uma cidade pode ser efetivamente modelada e controlada em tempo real como um “Cyber Physical System”.
Na experiência da Portoalegre.cc, sob a forma de causas compartilhadas (comentários, opiniões, descrição de lugares, reclamações e sugestões), as marcações geográficas ou geotags registradas na wikicidade, para além de uma constatação da realidade imediata, evocam um desejo de cidade, uma cidade possível. Isto pode ser considerado pelo fato de que essas representações, sob forma de conteúdo digital, restituem as práticas espaciais na cidade dos usuários da plataforma Portoalegre.cc, práticas essas onde se desenrolam o cenário e a situação em que cada indivíduo desenvolve as suas potencialidades enquanto ser social num determinado lugar e tempo. Já a experiência da wikicidade Real Time Rome, ao ser caracterizada como um Cyber Physical System, dialoga com a ideia de as cidades contemporâneas são a conjunção entre bits e átomos e que o desenvolvimento humano é marcado cada vez mais pela subsunção das funções mentais pelos computadores. Assim, a expansão de sensores e de dispositivos eletrônicos móveis permite que, através de interfaces digitais, os habitantes das cidades sejam envolvidos no monitoramento e no controle em tempo real com vistas à gestão do espaço urbano.
Muitos estudos realizados tratam dos efeitos dessas tecnologias digitais para a configuração de novas relações sociais no cenário urbano, situando os impactos para a convivência comunitária, para o fortalecimento (ou não) dos laços sociais (aproxima ou distancia os indivíduos), favorável (ou não) à cidadania ou os efeitos para novas práticas comunicacionais ou espaciais na relação com a cidade; bem como, de maneira comum, afirmam que a conjugação entre realidade física e realidade virtual demarca um novo caráter do espaço urbano que implica desdobramentos para a sua produção e reprodução. Para além disso, a comparação das experiências de wikicidades aqui tratada pode contribuir para a problematização do quanto a expansão do ciberespaço pode proporcionar maior capacidade de controle estratégico dos centros de poder sobre as redes tecnológicas e comunidades virtuais, bem como o quanto o ciberespaço pode estar a favor do potencial da inteligência coletiva, uma inteligência que encoraja as dinâmicas de reconstituição do laço social, a desburocratização das administrações públicas, a otimização dos recursos e equipamentos em tempo real e novas práticas democráticas (Lévy, 1999, p. 186).

Palavras-chave: wikicidade, wikicidadania, cyber physical system.