Eu estava espionando meu vizinho quando

#28

Luiza Crosman

“Eu estava espionando meu vizinho quando” se configurará como uma apresentação prática e teórica da obra homônima, de minha autoria, realizada entre Outubro de 2013 e Outubro de 2014. A obra, uma convergência entre performance e escrita, é composta por uma série de registros em vídeo e também em impressões de imagens de meu vizinho em sua varanda durante uma série de noites seguidas. Tais imagens foram capturadas em vídeo da janela de meu quarto ao longo de diversas madrugadas em que eu o ficava observando. Em seguida, os vídeos foram editados de forma a dar ênfase no caráter ficcional da espionagem de criar um personagem para meu vizinho, a partir de uma série de pequenas narrativas áudio-visuais em que a frase “Eu estava espionando meu vizinho quando…” é completada por diferentes finais. Porque me auto impus uma condição para a realização do trabalho, de que para espioná-lo eu devesse também me por disponível para sua espionagem, as imagens só foram capturadas em momentos em que eu estivesse no meu quarto de janela e cortinas abertas. Nenhuma das imagens foi capturadas em momentos em que eu não estava presente. Dessa forma, uma possível troca de papéis, como sugerido no vídeo “Eu estava espionando meu vizinho até que percebi que ele estava me espionando também”, se torna uma situação em constante latência.


Ao mesmo tempo em que filmava suas ações, escrevia breves textos acerca do ato de observar, de espionar e de ser espionado. Nesses escritos, alguns trechos, como por exemplo “Isca: ele só se põe a ver quando também me ponho”, ou “Contrato: me ponho vulnerável para me apropriar de ti” se valem se recursos literários para ampliar a dimensão da ação de espionar para a ação de projetar, ou imaginar a estranha cumplicidade que une aquele que é observado àquele que o observa. Em outros trechos, recursos teóricos, a partir dos conceitos de dispositivo e vigilância, possibilitam o trabalho se auto-problematizar, na sua invasão de privacidade e inserção em uma estética da vigilância, e ao mesmo tempo pensar questões de visibilidade e controle em uma esfera mais abrangente. Trechos escritos a partir do mito de Diana e Acteão surgem também como forma de comentar as questões relativas às conseqüências ou permissões de ser observado por alguém quando em um estado de vulnerabilidade.


A vigilância utilizada enquanto um dispositivo de referência (Duguet, 2009) para as práticas artísticas vem multiplicando seus suportes, operações e apropriações desde os anos 1960 e 1970. O circuito fechado (CCTV: closed circuit televesion) foi um dos primeiro equipamentos utilizados pelos artistas em suas instalações, tais como em trabalhos de Bruce Nauman ou Dan Graham. Entretanto, também é possível destacar obras como “Suite Venitienne” ou “The Adress book”, de Sophie Calle, como obras que a partir de estratégias performativas de vigilância ou espionagem, e através do uso de captura de imagens, relatos orais e escritos tentam recriar os personagens espionados e problematizar as fronteiras entre público e privado. Tais obras serão analisadas na comunicação de forma a contextualizar a apresentação aqui proposta e tentar responder a questões tais como: Como o ato de observar influencia ou modifica comportamentos em uma dada situação? Qual o potencial de vigilância que os corpos exercem uns sobre os outros? Nos últimos anos, o desenvolvimentos de novas tecnologias de comunicação complexificaram a utilização da vigilância como referência nas artes visuais, seja esta como uma finalidade intencionada ou seja como um efeito colateral secundário. O cenário contemporâneo possibilita que uma multidão de autores faça de toda câmera uma potencial câmera de vigilância, e é esse contexto que se apresenta como condição de possibilidade para “Eu estava espionando meu vizinho quando” possa surgir.
A situação em constante latência da possibilidade de ser vista e vigiada pelo meu vizinho aponta para o novo regime contemporâneo da estética da vigilância (Bruno & Lins, 2010). A dissimetria entre o ver e ser visto presente no regime clássico da estética da vigilância (Idem, 2010), ligado a processos disciplinares de controle que distinguiam o vigia e o vigiado, não funciona mais como paradigma para as operações da presente proposta. Entendemos que a nossa condição contemporânea estabelece que vigiar ou ser vigiado faz parte do nosso comportamento cotidiano, por isso, a necessidade de me deixar disponível ao olhar desse outro. Nessa disponibilidade, há um risco sempre iminente: se eu estou a espionar meu vizinho, e ao mesmo tempo me dispondo a ser espionada por ele, qual a finalidade do olhar do meu vizinho dirigido a mim? Essa questão também esbarra nas múltiplas possibilidades de apropriação da vigilância contemporânea. O olhar que vigia – maquínico ou não – não está restrito aos mecanismos de controle do Estado ou das instituições. A vigilância está distribuída no tecido social de forma híbrida e heterogênea, aliando-se com a publicidade, o comércio, o entretenimento, o jornalismo, a arte, entre diversos outros campos.
A comunicação apresentada durante o evento irá expandir teoricamente as noções apresentadas nos breves trechos, escritos durante a realização do trabalho. Serão utilizados, por exemplo, como referencia a noção de dispositivo apresentada por Giogio Agamben, e sua referencia direta ao filósofo Michel Foucault, para pensarmos a extensão da ação do corpo para uma ação maquínica, a passagem do olhar corporal para a utilização de uma câmera – e depois de recursos de edição e impressão de imagem – no ato de vigiar e como esses diferentes dispositivos são apropriados em uma operação artística. Além disso, o texto “dispositivos” de Anna-Marie Duguet servirá para traçar uma breve genealogia da vigilância enquanto dispositivo de referencia na arte. Ainda a partir do corpo, será usada a noção da autora e performer Eleonora Fabião que, através de Espinosa, propõe que um corpo que não é separável de suas relações com o mundo porque que é uma entidade relacional, para a compreensão de como nos formamos corpo-potência. Um corpo que não está, e nunca estará, completamente formado, pois que é permanentemente informado pelo mundo.
A partir do encontro dos trechos que fazem referência ao mito de Diana e Acteão com as noções de vigilância distribuída, estética do flagrante e regimes de visibilidade (Bruno, 2004, 2006, 2013), será investigado como essas negociações possibilitam a criação de novas e diversas subjetividades. E ainda, através da projeção dos vídeos de registro e da distribuição das imagens impressas ao público, e da leitura de tais escritos, a apresentação oral do artigo escrito irá abranger ainda conceitos acerca da formação de um público cúmplice, que participa ativamente de um ato voyeur coletivo, problematizando as relações entre ver e ser visto, público e privado, o real e o ficcional, e vigilância e espetáculo.

Tanto a obra quanto a comunicação configuram uma prática artística que visa aproximar teoria e prática como formas de pensar a performance para algo além do performático. Pelo contrário, como a criação de uma situação performativa, como defendida por Eleonora Fabião no texto “Performance e teatro : poéticas e políticas da cena contemporânea” em que “a performance desafia definições, pois ativa dinâmicas paradoxais”. Ou seja, uma situação em performance que pode ativar a consciência do corpo ao escapar da regulamentação do senso-comum e levar experiências cênicas ou representacionais ao limite. A apresentação da comunicação escrita e, para além disso, do próprio trabalho, através dos vídeos, textos e imagens impressas, possibilitará a inserção do público na criação de significações da obra, diminuindo assim o aspecto ficcional da qual ela mesmo parte e implicando uma maior presença e participação dos espectadores.




Palavras-chave: vigilância, visibilidade, controle, dispositivos.

Referências:
Aganbem, G. (2009). O que é um dispositivo? In O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos.


Bruno, F. (2006). Quem está olhando? Variações do público e do privado em weblogs, fotologs e reality shows. In: Fatorelli, A. (Org.). Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Muad X.
Bruno F. (2004). Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade e subjetividade nas novas tecnologias de informação e de comunicação. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, 24, 110-124..


Bruno F. (2007). Estética do flagrante: controle e prazer nos dispositivos de vigilância contemporaneous. Revista cinética. Recuperado de http://www.revistacinetica.com.br/cep/fernanda_bruno.htm
Bruno, F., Lins, C. (2010). Práticas artísticas e estéticas da vigilância. In: Bruno, F. et al.(Orgs). Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina.
Duguet, A. (2008). Dispositivos. In: Maciel, K. (ORG) Transcinemas. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa Livraria.
Fabião, E. Performance e teatro : poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta, 8(1), 235-246.
Foucault, M. (2010). Vigiar e Punir: nascimento da prisão (38a ed.). Petrópolis: Vozes.
Sibilia, P. (2008). O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de janeiro: Nova Fronteira.