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Jorge de La Barre
Em preparação para os megaeventos de 2014 e 2016, a cidade do Rio de Janeiro tem experimentado um choque de agenda permanente, caracterizado por importantes projetos de renovação urbana, acompanhados por remoções e pacificação de favelas. À afirmação oficial do Rio como cidade global e de megaeventos (esportivos e outros) corresponde uma vontade hegemônica de misturar espaço público festivo e publicidade. A partir dos trabalhos de Sharon Zukin e de David Harvey sobre consumo visual e controle social, questionamos a produção desse modelo de cidade festiva. No Rio de Janeiro mais particularmente, a festa hegemônica aparece como o lugar da resolução negativa, ou seja de uma negação dos conflitos.
Centro privilegiado do signo, da mídia e do código, a cidade é o lugar do consumo visual por excelência, proporcionando uma sensação de simultaneidade e de interconexão global. Verificamos isso particularmente em tempos de megaeventos, quando as cidades-sede recebem um influxo extraordinário de visitantes estrangeiros e entram numa transe hiper-mediática. Nesse momento as marcas patrocinadoras do megaevento realizam um verdadeiro assalto publicitário aos sentidos. Invadem o espaço da cidade com imagens de euforia coletiva, que ultimamente intimam apenas ao consumo individual burguês.
Desde pelo menos os Jogos Pan-Americanos de 2007, a agenda carioca está integralmente predefinida pelos megaeventos – sejam eles esportivos ou não. A cidade encontra-se numa estranha situação de urgência futurista que vai cumulando e acumulando choques de ordem e “choque de futuro”. Enquanto figura privilegiada de um modelo de desenvolvimento urbano hegemônico no Rio de Janeiro atualmente, o megaevento aparente-se a uma forma de fuga mágico-festiva que iria resolver todos os problemas estruturais que a cidade sofre há décadas. Na imaginação entusiasmada dos planejadores, o megaevento deve de fato aparecer como uma das formas mais radicais de solucionismo.
Atualmente, o discurso oficial carioca está integralmente ocupado pela retórica megaeventista e seu vocabulário performativo: cidade-sede, cidade-modelo, legado, ranking, etc. Temos, ao horizonte do Rio Pós-2016, a promessa de um “Rio mais integrado e competitivo”. Graças aos milagres da economia criativa, o Rio de Janeiro apostando nos “setores prioritários” da “moda, design, audiovisual e turismo” deve tornar-se em breve a “capital da indústria criativa”. Já para esse “Rio criativo”, o Brasil como um todo tem sua marca: a RJ, “Marca Registrada do Brasil” que vem agregando os valores estético-humanistas de Paixão, Alegria, Beleza, Estilo, Inovação, Paz, Energia e, last but not least: Orgulho. No âmbito de vender a Marca RJ, e quem sabe, a própria cidade do Rio e o país ao capital global, não precisa ser especialista em city marketing para entender o quanto esses valores, magicamente reciclados em argumentos de venda festivo-contagiantes, são de fato atrativos no mercado altamente competitivo das cidades criativas globais.
Além das retóricas extasiadas, a guerra global pelo soft power obriga a uma inflação de reformas urbanísticas, todas declinadas em “re”: revitalização, requalificação, renovação, ressignificação. É ultimamente a uma reinvenção global que as cidades estão convidadas se elas querem manter-se competitivas. Todas essas “re-tóricas” são também formas de pacificação geral e de lifting urbano que, em princípio, deveriam facilitar a organização e o bom decorrer dos megaeventos. Os protestos de junho de 2013 durante a Copa das Confederações mostraram exatamente o contrário. E assistimos em todas as cidades-sede durante a Copa do Mundo de junho-julho de 2014, a uma inflação da presença policial. Todos os protestos, julgados antipatrióticos, foram brutalmente reprimidos.
Altamente festivos os megaeventos esportivos iam, a princípio, ajudar a “acalmar o otário”. Por causa da elitização do futebol é justamente o contrário que aconteceu em vários segmentos da população brasileira durante a Copa de 2014, e mais significativamente ainda durante a Copa das Confederações de 2013. Tentativamente festiva a Copa de 2014 levou seu lote de descontentes, e sobretudo uma força de dissuasão massiva: milhares de policiais e militares espalhados pelas ruas do Rio e de todas as cidades-sede, a fim de garantir uma ordem pública supostamente ameaçada. Com as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), a tentativa de pacificação/domesticação das favelas cariocas que acompanha a agenda dos megaeventos desde 2009 tem resultados mitigados. O que, de fato, o poder não esperava é que “os problemas” viessem do asfalto, sob a forma de uma contestação radical do modelo de cidade-sede dos megaeventos. Reduzir esse modelo de cidade festivo-megaeventista a uma vontade hegemônica de misturar espaço público e publicidade é já criar condições para uma crítica do mesmo.
Enquanto espaço publicitário, o espaço público é o efeito de uma visibilidade onipresente das corporações, das marcas registradas, das relações públicas, do marketing, do diálogo social e das virtudes da comunicação. O espaço público desaparece, deixando espaço integral ao publicitário. Se formos levar a sério a hipótese baudrillardiana do espaço como campo magnético do código, como não pensar o espaço público urbano como espaço publicitário?
Paradoxalmente, nesse momento de euforia publicitária e de transe coletiva, a cidade é nua, todo seu espaço-tempo plenamente exposto revela sua função primária: a reprodução do código. Neste sentido o espaço da cidade contemporânea é um espaço de diferença. Apesar das aparências todomundistas a cidade megaeventista torna-se um espaço de diferenciação mais cruel ainda: privatização do espaço público pela publicidade consumista excludente, e satelização negativa da cidade, pela força centrífuga dos espaços de comunhão consumista privada (shoppings, condomínios fechados, e obviamente estádios). Na euforia dos megaeventos, a matriz urbana não produz nada mais do que signos distintivos de uma diferença radical, disfarçados pelas mensagens apelando ao êxtase coletivo. Todas as funções abolidas numa só dimensão: comunicação. É o próprio sentido do êxtase: todos os eventos, todos os espaços, todas as memórias abolidas, na única dimensão da informação. É a definição do obsceno, a obscenidade das cool communications.
Durante o megaevento, o espaço urbano é literalmente assaltado pela festa hegemônica que cria, por entropia, uma alteridade radical própria. Qualquer atitude não-festiva será condenada por ser potencialmente terrorista, qualquer forma de agitação não-eufórica será naturalizada como criminal. As polícias (militar, civil, choque de ordem, etc.) têm todos os direitos, e até o dever de garantir a festa pelo terror securitário – contra o horror potencial do descontentamento. As esferas da euforia megaeventisto-todomundista devem ser mantidas absolutamente separadas de todas as outras – políticas, críticas, contestatórias. Assistimos assim a uma separação radical: polícia e massas festivas, unidas numa mesma força expiatória contra uma imaginada alteridade maléfica. Além das aparências do turismo esportivo global, a hegemonia festiva celebra de fato a ausência de diversidade.
Palavras-chave: vigilância, Rio de Janeiro, megaeventos.