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Raphael Silveiras
O governo da Internet envolve uma complexidade de atores. Isto porque essa extensa rede de redes de computadores, cuja principal característica é realizar o tráfego de informações, possui uma série de protocolos que possibilitam as comunicações entre esses computadores, uma infinidade de cabos submarinos, redes sem fio, fibras óticas, satélites, entre outros dispositivos que precisam conversar para essa rede de redes funcionar, formando um complexo maior de diretrizes técnicas e políticas presentes na sua governança. Em outras palavras, pode-se dizer que o governo da Internet é um extenso campo de análise com uma multiplicidade de atores que de algum modo chegam a consensos no que diz respeito ao modo de funcionamento da Internet e, em algumas particularidades, em seu modo de utilização. A partir do desenvolvimento da Internet, difusão e utilização pelos mais diversos tipos de usuários, surgiram alguns embaraços na trama das redes, os quais questionam em alguma medida seu modo de utilização e gestão, tais como: disponibilização de informações protegidas por direitos autorais; disponibilização de vídeos e imagens sem autorização dos atores presentes nesses arquivos multimídia; ameaças de agressão física; agressão verbal; controle pelas empresas de telecomunicações da velocidade de acesso dos seus usuários dependendo do site que eles tentaram acessar; decisões judiciais arbitrárias que desconsideram o modo de funcionamento da Internet – como negar o acesso de todo o território nacional a determinado site. Essas práticas na rede mundial de computadores são consideradas ilegais pelo corpo jurídico nacional e há também algumas sobre as quais esse corpo ainda não havia reflexionado.
Diante disso, a resposta para esse “imbróglio” se deu a partir da invocação do Estado com a finalidade de que este regulamentasse a Internet no Brasil, estabelecendo um escopo jurídico para a consolidação de uma relação harmônica entre direito e rede, um Marco Regulatório da Internet no Brasil. Tendo isso como referência, a sociedade brasileira participou nos últimos anos de um intenso e acalorado debate acerca da regulamentação da Internet no Brasil, no qual o epicentro foi o Marco Civil da Internet. Ainda que essa discussão tenha acontecido nos mais diversos espaços de habitação do humano, foi na consulta pública realizada pela Internet que se concentraram parte preponderante das informações e colaborações que foram utilizadas com a finalidade de edificar um Projeto de Lei (PL) para a regulamentação da Internet no Brasil, o PL 2126/2011.
Essa consulta pública aconteceu em duas fases entre os anos de 2009 e 2010. Na primeira fase, os organizadores da consulta – Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) e o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vergas do Rio de Janeiro (CTS/FGV-Rio) – apresentaram um texto base para ser discutido entre participantes da consulta. A partir desse texto base e das discussões promovidas acerca do mesmo, esse texto se consolidou em um Anteprojeto de Lei que serviu como escopo para o debate da segunda fase. Através dessas duas fases surgiu o PL 2126/2011 que foi encaminhado ao Congresso e lá permaneceu até o início de 2014. Por intermédio de um intenso jogo político em várias esferas do meio social e, por fim, no Congresso, o referido PL torna-se lei, a Lei nº 12965/2014.
Há de se notar que nesse processo de constituição de políticas públicas houve maior proximidade entre sociedade e Estado se comparado aos modos convencionais de captação de informações dos cidadãos para a concretização das mesmas em políticas públicas, isso porque os usuários da Internet tiveram a oportunidade de colocar de maneira direta, com suas próprias palavras, suas contribuições. Essa prática inovadora de realizar consultas públicas pela Internet foi replicada não apenas pelo governo como também por outras instituições, representando maior proximidade entre os que constroem políticas públicas e aqueles que vivenciam a objetivação das mesmas. Assim, o cidadão passa a se avizinhar de uma democracia que seria próxima daquilo que se concebe como democracia direta. Próxima porque ainda há intermediários fulcrais para a constituição de Projetos de Lei e sua consolidação em políticas públicas, de modo que é possível questionar em que medida uma consulta pública realizada pela Internet é algo de fato inovador e até que ponto não permanece uma linha de reprodução de um estrutura estabelecida ao ter em vista que se regulamenta a Internet no Brasil. E não se pode perder de vista que essa regulamentação acontece justamente pelo Estado, ainda que tradicionalmente o papel de regulamentação seja compreendido como intrínseco a ele. Tanto regulamentação da Internet quanto regulamentação da Internet pelo Estado são elementos que devem ser interpelados. É possível questionar também se esse tipo de constituição de políticas públicas por meio de consultas públicas pela Internet não corrobora com o arrefecimento de tensões políticas postas nos últimos anos pela sociedade brasileira. Pois, como colocado, as consultas públicas realizadas pela Internet remetem-se a uma proximidade de uma democracia direta.
Como se sabe, essa regulamentação abre margem para refletir sobre as estatizações das relações de poder ponderadas por Michel Foucault bem como para reflexionar sobre a noção de reprodução e a dimensão de competência do Estado ancorado nas contribuições teóricas de Pierre Bourdieu. Juntamente com os questionamentos colocados acima vinculados ao MCI – os quais se desdobram em indagações acerca do modo de utilização da Internet, relação entre esse modo de utilização e o vínculo com a reprodução de estruturas de práticas previamente estabelecidas (como recorrer ao Estado para regulamentar a rede mundial de computadores no Brasil), o que faz este trabalho assumir também uma dimensão genérica ao invés de se prender ao debate acerca do MCI –, é importante delinear o perfil dos participantes dessa consulta pública para vislumbrar de que modo eles precisam lidar diretamente com os resultados dessa consulta, bem como apresentar o Marco Civil em números, comparando os mesmos com a quantidade de usuários que se conectam com a rede mundial de computadores a partir do Brasil. Em poucas palavras, pode-se colocar que o presente trabalho questiona quais usuários são afetados por uma regulamentação da Internet no Brasil e em que medida não se segue um fluxo ao invés de realizar refluxos na rede mundial de computadores. Isso se faz tendo como referências de análise consultas públicas realizadas pela Internet e como ponto “concreto” de imersão nas mesmas a consulta pública para o Marco Civil da Internet no Brasil.
Palavras-chave: internet, Marco Civil da Internet, informação, sociedade.