Vigiar para punir: em análise o Detecta, sistema que utiliza as TIC’s para prevenir e conter ações criminosas no Estado de São Paulo

#57

Soraia Herrador Costa Lima de Souza
Emanuel Galdino da Costa

“O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis àqueles sobre quem se aplicam (...)” (Foucault, 2008, p. 143).

A ampliação do acesso à Internet e o surgimento contínuo de redes sociais propiciaram um ambiente ideal para que os usuários produzissem e obtivessem cada vez mais acesso à informação. Trata-se da era dos prossumidores, ou seja, usuários que produzem e consomem informações. Tal poder de autocomunicação(1) contribui de maneira incisiva para que se tenha atualmente o que pode ser denominado de excesso informacional, um emaranhado de novos dados, novas informações que circulam 24 horas por dia, sete dias por semana, sem que eles fiquem limitados a fronteiras geográficas, dentro do conceito de desterritorialidade(2).
No entanto, esta mesma autonomia que o ambiente virtual proporciona aos usuários pode servir tanto para ações protecionistas como para ações ilícitas de terceiros. Isso porque as pessoas fornecem dados relevantes de suas vidas, mesmo quando a intenção principal não é essa. É o que acontece quando se acessa contas online em bancos, faz inscrições em concursos via algum endereço eletrônico, envia e-mails. Os dados e as informações permanecem na web mesmo quando o usuário está desconectado, podendo ser acessados e utilizados contra ou a favor dele.
Exemplos não faltam para ilustrar a contextualização apresentada. Em 2013, durante uma maratona realizada na cidade de Boston, Estados Unidos, duas bombas explodiram deixando mortos e feridos no local. Indignados, cidadãos passaram a utilizar as mídias digitais e redes sociais para tentar encontrar (e apontar) suspeitos sobre o crime. Tal atitude fez com que diversas pessoas inocentes temessem pela sua segurança(3).
Da mesma forma que cidadãos comuns utilizaram plataformas online para pesquisa, governos de diferentes países tiveram acesso a informações – que, inclusive, seriam teoricamente sigilosas – sobre usuários dentro e fora de seus limites geográficos. O maior escândalo envolvendo esse tipo de ação foi revelado pelo analista de sistemas Edward Joseph Snowden. O ex-funcionário da CIA, agência de inteligência norte-americana, e ex-contratado da NSA (National Security Agency ou, Agência de Segurança Nacional, em tradução livre) revelou detalhes do programa de vigilância global Prism, projetado pela NSA e que permitia a oficiais norte-americanos pesquisar e coletar informações como históricos de busca, conteúdo de e-mails, transferência de arquivos e conversas online (chats). Essa atitude impactou de maneira negativa não apenas aspectos diplomáticos relacionados à política externa dos Estados Unidos – inclusive do próprio governo brasileiro – como igualmente fez com que os usuários desacreditassem nas políticas de privacidade estabelecidas por grandes empresas de tecnologia, tais como Google, Apple, Facebook e Twitter, uma vez que informações pessoais foram acessadas sem o seu consentimento(4,5).
Seguindo esta tendência de acesso às informações com ou sem autorização dos usuários, a Secretaria de Estado da Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo anunciou no primeiro semestre de 2014 o DAS (Domain Awareness System ou Sistema de Domínio da Consciência, em tradução livre), popularmente conhecido como Detecta. Trata-se de um sistema de monitoramento criminal do governo do estado de São Paulo desenvolvido por meio de uma parceria com a empresa norte-americana de tecnologia Microsoft e com a polícia de Nova Iorque (Estados Unidos), o qual indexa grandes quantidades de informação policial e faz associações automáticas entre esses dados, apoiando-se nos conceitos de big data e business intelligence(6). Ou seja, é a transformação de dados em informações relevantes para a tomada de decisão, que, neste caso, leva à prisão de criminosos.
O Detecta permite também “que informações de diversos bancos de dados sejam filtradas de uma forma pré-estabelecida para que seja emitido um alerta sobre crimes. Esses dados serão automaticamente relacionados e apresentados para o usuário, que pode ser um policial de patrulhamento, um investigador ou o responsável pelo planejamento dos recursos de segurança pública em um determinado local. São essas características que permitem o aprimoramento da inteligência policial”(6).
O sistema poderá ser acessado por meio de computadores, notebooks e dispositivos eletrônicos móveis (como tablets e smartphones), mas sempre sob comando de outros órgãos como o Copom (Centro de Operações da Polícia Militar), o Cepol (Centro de Comunicações e Operações da Polícia Civil) e o Ciisp (Centro Integrado de Inteligência de Segurança Pública do Estado de São Paulo)(6).
Embora o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s) e dos dados presentes no ambiente virtual seja algo recente, mecanismos de vigilância e de poder disciplinar não são frutos da sociedade do conhecimento. De acordo com Foucault(7), essas ideias surgem juntamente com a modernidade, uma vez que ela traz consigo dois pontos importantes: o poder disciplinar (no âmbito dos indivíduos) e a sociedade estatal (no âmbito do coletivo). E, nesse contexto, para que haja uma boa governabilidade, é preciso que os interesses individuais sejam sobrepujados frente aos interesses coletivos, submetendo o espaço privado ao espaço público, de modo a equilibrar e fortalecer os três pontos importantes dentro das obras do autor, a saber: poder, direito, verdade(8).
Para assegurar a homogeneidade dos atos dos indivíduos, é preciso estabelecer um padrão de comportamento, o qual somente pode ser implementado por meio de instituições que assegurem que tais comportamentos sejam perpetrados. Entre elas estão os manicômios, escolas e prisões. No entanto, nenhuma instituição possui maior poder disciplinar e de coerção do que a estrutura arquitetônica pensada no século XVIII por Jeremy Benthan (século XVIII) – o panóptico (panopticon) – descrita, assim, por Foucault (2008, p. 165):

“Na periferia uma construção de anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em três em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se extremamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e recolher imediatamente”.
O panóptico apresenta duas ideias que estão presentes também no sistema Detecta: a vigilância e a invisibilidade. Ao utilizar câmeras de vigilância em diferentes pontos do estado de São Paulo, ao acessar dados presentes no ambiente online, o sistema instituído pelo governo estadual paulista disciplina e coage seus cidadãos, estabelecendo relações de poder e aprisionando os sujeitos em uma realidade vigiada. Assim, perde-se a liberdade individual em prol de um mecanismo de poder supostamente necessário para assegurar o bem da população.
Assim, este artigo propõe um estudo de caso do sistema de monitoramento criminal do Estado de São Paulo DAS, também conhecido como Detecta, a partir dos conceitos de governabilidade, poder, vigilância e disciplina apresentados por Michel Foucault em diferentes obras (7,8,9). O objetivo do trabalho é mostrar que o sistema é tanto uma ferramenta de controle e repressão, quanto um mecanismo instituído e legítimo de proteção dos cidadãos, dentro e fora do ambiente virtual. Para tanto, serão analisadas as formas de acesso a tais informações, bem como as empresas envolvidas nessa parceria, de modo que se tenha uma visão mais clara de como o sistema funciona e seu impacto na vida dos cidadãos paulistas, por meio de entrevistas realizadas pelos autores e pesquisas.

Palavras-chave: vigilância, tecnologia, big data.

Referências:
Castells, M. (2002). A sociedade em rede: a era da informação – economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra.
Lévy, P. (1998). A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola.
Lee, D. Boston bombing: How internet detectives got it very wrong. In BBC.
The Economist.(2014). Little peepers everywhere.
Greenwald, G. & Macaskill, E. (2014).NSA Prism program taps in to user data of Apple, Google and others. In: The Guardian.
Secretaria de Estado da Segurança Pública. Parceria com Microsoft traz sistema de inteligência policial de NY.
Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.
Foucault, M. (2008). Vigiar e punir: nascimento da prisão (35a ed.). Petrópolis: Vozes.
Foucault, M. (2001). A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau.