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Cristiana de Siqueira Gonçalves
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro
As novas tecnologias de visualização do corpo, que permitem o mapeamento genético e o mapeamento cerebral, produzem novos discursos e novas formas de intervenção sobre o corpo, assim como novas formas de controle e captura.
As práticas de mapeamento genético, por exemplo, têm possibilitado a seleção genética antes do nascimento e a gestão do risco de desenvolver determinadas doenças, levando a intervenções médicas preventivas. Um famoso exemplo disso foi o caso da atriz americana Angelina Jolie, que tendo um defeito no gene BRCA1, fez uma dupla mastectomia preventiva.
O mapeamento cerebral por outro lado, tem levado a diferentes discursos acerca dos sujeitos, não mais vistos a partir de uma interioridade ou de uma subjetividade, mas sujeitos cerebrais, em que doenças, tais como depressão e TDAH, não são mais vistos dentro de um conceito biopsicossocial, mas como deficiência ou alteração neuroquímica a ser tratada com o uso de medicamentos. Concomitantemente, discursos sobre comportamento, capacidade cognitiva, humor e outras questões, também são remetidos a trocas neuroquímicas e nesse sentido, também são passíveis de serem alteradas pelos mesmos medicamentos que tratam as doenças.
Isso nos leva a discussão das enhancement technologies - tecnologias de aprimoramento - que são intervenções que visam a melhora do funcionamento ou de características humanas para além do sustento da saúde ou reparo do corpo (Hogle, 2005 apud. Frize, 2013).
Assim, especificamente neste trabalho, propomos analisar o consumo de medicamentos voltados para a melhora cognitiva e do humor, por entendermos que este consumo está articulado com novas formas de perceber e intervir sobre o corpo, formas essas que longe de estarem resolvidas, envolvem diversas controvérsias e questões éticas, tais como a segurança do consumo para esses fins, a possibilidade de coerção ao consumo, a justiça distributiva, a medicalização da condição humana e a redefinição da natureza.
Mas como essas novas tecnologias de visualização do corpo que levam a mudanças das práticas e discursos levam a novas formas de controle e captura?
Segundo Foucault (2000), um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a assunção da vida pelo poder, o que ele chamou de “estatização do biológico” ou biopolítica. Tal tecnologia, não excluindo a tecnologia disciplinar, se aplicaria a vida dos homens enquanto ser vivo e enquanto espécie, tentando reger a multiplicidade de homens na medida em que essa redunda em corpos individuais, mas principalmente se dirigindo a multiplicidade de homens à medida que eles formam uma massa global afetada por processos de conjunto próprios da vida, tais como nascimento, morte, doença, etc. Aqui, sendo a morte uma ameaça constante, combatê-la se torna uma forma de governar a vida, aumentando a mesma, controlando seus acidentes, limitando suas deficiências. De acordo com Foucault “a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la, de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biológicas” (Foucault, 2000, p. 313).
Tal conceito de biopoder, segundo Rabinow & Rose (2006), inclui discursos de verdade sobre o caráter ‘vital’ dos seres humanos, com autoridades competentes para falar sobre esses discursos de verdade, inclui estratégias de intervenção sobre a coletividade em nome da vida e da morte, e modos de subjetivação que levariam os sujeitos a agir sobre si mesmos em nome de sua própria vida ou saúde, e da própria vida e saúde de seus familiares ou da sociedade como um todo.
Nesse sentido, estamos diante de uma tecnologia de poder que tem a vida sobre o controle do Estado e da sociedade, mas que também fala do controle de cada um sobre si, sendo a gestão de si um aspecto importante dessa biopolítica. Gestão de si que aparece não apenas na busca de um corpo saudável e perfeito, de um sujeito que deve estar atento ao próprio corpo, mas de um sujeito que é responsável por gerir a sua produtividade e consequentemente a sua empregabilidade.
Assim, tendo que gerir a sua empregabilidade em um mundo competitivo, não apenas fazendo cursos e adquirindo habilidades, mas tendo que estar ativo para cumprir metas e disponível integralmente, o consumo de medicamentos para a melhora cognitiva e do humor passa a ser um meio para conseguir aderir a tal modelo. Principalmente o consumo da Ritalina, que vem tendo repercussão na mídia através de notícias de “concurseiros” e executivos que fazem uso dessas substâncias para conseguir estudar ou trabalhar por mais horas e bater suas metas.
E se nessa gestão dos riscos, a ideologia da saúde e do corpo perfeito faz da doença, e aqui acrescentamos a velhice e a obesidade, sinônimos de fracasso pessoal (Ortega, 2003), nessa lógica gestionária imposta pelo capitalismo, o fracasso também é culpa do sujeito. Sujeito esse que tendo sua constituição subjetiva articulada a indústria da comunicação e a sociedade de consumo, encontra no medicamento a resolução para todos os males - não apenas das doenças, como também da ineficácia - encontrando no cuidado com o corpo a possibilidade de uma vida não apenas saudável, mas potente.
“...no âmbito do paradigma biotecnológico, tudo parece convergir para a ideia de que nos tornamos superpotentes, pois as decisões acerca da vida e da morte passam a depender de nós. Por um lado, somos capazes de produzir vida sintética ou artificial, ou seja, somos capazes de produzir artificialmente nossa existência. Por outro lado, rapidamente estaremos aptos a prolongar indefinidamente a vida, eliminando a morte de nosso horizonte.” (Pedro, 2009, p. 74)
Porém, o que está em jogo aqui, segundo Pedro (2009) é isso assumir um caráter de “necessário”, pois com o avanço da genética, da bioquímica, da física e das técnicas associadas a estes saberes, mais poderes e escolhas de intervenção teremos e assim, mais responsabilidade em administrar tal poder, tendo que fazer escolhas. A questão não será mais de querer administrar, mas de “não poder não administrar”. Como Ortega (2003) destaca, ganhamos realmente autonomia, mas autonomia para nos vigiarmos, nos tornarmos peritos e “... experts de nós mesmos, da nossa saúde e do nosso corpo.” (Ortega, 2003, p. 66).
Assim, quando falamos das novas tecnologias, que têm possibilitado diversas intervenções no corpo e na vida, podemos falar de uma ampliação do biopoder. Com as novas tecnologias, o poder de gerir a vida se ampliou consideravelmente, desde antes do nascimento, com a seleção genética, passando pelo melhoramento artificial da nossa capacidade cognitiva e do nosso humor, até a morte, com a possibilidade do prolongamento da vida.
Nesse quadro, as indústrias farmacêuticas se voltaram para a produção e divulgação das lifestyles drugs, “... medicamentos usados para condições que não são problemas de saúde, ou que se situam na fronteira entre saúde e bem-estar. São medicamentos para parar de fumar, impotência sexual, obesidade, queda capilar, prevenção de acne, etc.” (Aguiar, 2004, p.126-127)
Aqui podemos notar o quanto o campo da saúde foi ampliado para questões que não dizem exatamente respeito ao âmbito da saúde/doença, mas a vida como um todo.
Estaríamos assim, em uma nova biomedicalização, que conserva a característica de expansão da jurisdição médica para novos domínios, mas repousa fortemente sobre as inovações tecnológicas (Clarke & Col., 2000). O modo de funcionamento dessa nova biomedicalização se caracterizaria não mais por intervenções que buscam ajustar ou normatizar o que existe, mas por intervenções que buscam transformar a própria vida, e para, além disso, produzir e sintetizar a mesma (Rabinow & Rose, 2003 apud. Pedro, 2009).
Porém, se a responsabilidade pela gestão de nossa vida é depositada em nós mesmos, sabemos que o alcance da saúde perfeita, do corpo saudável e o acesso a tecnologia não é tão fácil assim. Falamos muito sobre genética, mas mapeamento genético, bancos de genes, testes genéticos, seleção genéticas, etc, são procedimentos muito caros e ainda de pouco acesso. Não tão distante, o cultivo de hábitos saudáveis, a manipulação do corpo e o consumo de medicamentos visando a melhora da performance também requer dinheiro.
Neste sentido, há uma grande porcentagem dos cidadãos que fica de fora das novas formas de subjetivação, sendo excluídos do mercado global e do acesso aos avanços da tecnociência (Sibília, 2002), mas que mesmo estando excluídos não deixam de estar dentro deste biopoder e de ter as suas vidas geridas em algum grau pelas técnicas dessa biopolítica.
Porém, se essas novas formas de intervenções sobre o corpo nos controla e captura, há possibilidade de outras constituições subjetivas, pois como destaca Foucault (2000), toda relação de poder comporta como possibilidade a resistência:
“Longe de ser onipotente, portanto, o biopoder possui certas fendas através das quais as forças vitais conseguem fugir e reagir. Embora a vida seja submetida à cálculos explícitos e outros controles, isso não significa que ela tenha sido cooptada em arranjos de técnicas que a dominam e a modelam integralmente; pelo contrário, como o próprio Foucault esclareceu no primeiro volume de História da Sexualidade, “ela lhes escapa continuamente”. As potencias da vida continuam a obstaculizar as ambições fáusticas do biopoder, obrigando à reestruturação e à mudança permanente. A formatação dos corpos e das subjetividades é um processo constante, uma batalha sem fim entre forças divergentes.” (Sibília, 2002, p. 169 – 170)
Não se trata aqui de um retorno à natureza humana, pois jamais fomos humanos no sentido de uma pureza (Latour, 1994), somos ciborgues, seres híbridos de organismo e máquina, não havendo uma dada natureza humana, uma dualidade natural x artificial, mas uma construção que se dá articulada com a tecnologia (Haraway, 2009). Também não se trata de retrocedermos ao estado anterior das coisas, onde não haja medicamentos e diversas técnicas de intervenção sobre a vida, mas se trata de pensarmos nas possibilidades diversas de constituição dos sujeitos para além dessas capturas, olhando critica e refletidamente para constituirmos outras possibilidades.
Neste sentido, a Cartografia das Controvérsias, tal como proposto por Latour (2012), se torna importante se quisermos delinear as controvérsias em questão a fim de compreender uma realidade que é complexa, que é formada por uma rede sociotécnica heterogênea - composta por humanos e não-humanos -, que é fruto de associações, debates e discussões entre diferentes atores e que se estabelece de uma maneira, mas pode ser constituída diferentemente, performando outras realidades.
Palavras-chave: biotecnologias, cartografia das controvérsias, gestão de si, visibilidade, tecnologias de aprimoramento.