Midiativismo nas Jornadas de Junho: Narrativa, Sujeito e Verdade

#20

Antonio Engelke

As Jornadas de Junho forneceram uma oportunidade singular para observar o papel desempenhado pelo ativismo político via internet, sobretudo no que diz respeito à disputa pela configuração do sentido dos protestos. Se os eventos não “falam” por si mesmos, ao contrário, “são falados”, então toda a questão está em observar os efeitos reais que um determinado enquadramento acerca dos protestos foi capaz de gerar, os propósitos a que servem, e o que poderia revelar sobre aqueles que o formulam. Isto vale para ambos os lados do espectro político, isto é, tanto para a chamada grande mídia quanto para o trabalho da multidão de midiativistas ligados em rede. O presente trabalho examina a narrativa da midiativistas (doravante chamados genericamente de “ninjas”), argumentado que, mais do que constranger a mídia corporativa, corrigindo-a factualmente, mais do que vigiar e denunciar a exceção instaurada pelas forças do Estado, o enquadramento polifônico operado pela miríade de indivíduos e coletivos ativistas logrou 1- desconsagrar publicamente o mito fundador do jornalismo, calcado na objetividade; 2- ampliar o escopo das vozes na esfera pública, redefinindo as condições do diálogo e ampliando o espaço de produção da memória; e 3 - contribuir para construir o sujeito-político-manifestante durante o processo de representá-lo. Examinemos essas questões mais de perto.
O sucesso raramente vem sem polêmica, e com os midiativistas não foi diferente. Vejamos rapidamente as objeções que lhe foram dispensadas. Os argumentos dividem-se em várias frentes: a precariedade da linguagem visual empregada, o amadorismo do discurso, a parcialidade que solaparia o princípio ético de procurar captar os fatos em sua pluralidade de significados, a falta de uma edição capaz de dar sentido aos fluxos ininterruptos de imagens transmitidas. Não foram poucas as vozes que afirmaram que o trabalho dos ninjas sequer poderia ser considerado como jornalístico, pois que, sendo atores apaixonados que intervém diretamente na realidade, e não observadores distantes que se esforçam apenas em descrevê-la, transformar-se-iam automaticamente em personagens das histórias a que pertencem, não em cronistas de fatos. Dizem os críticos: não é possível ocupar ao mesmo tempo as posições de observador e participante; não há como extrair um sentido da torrente de imagens que se sucedem sem cortes durante as longas e ininterruptas transmissões dos protestos em tempo real; não há, enfim, compreensão ao final de uma narrativa ninja, somente espasmos de ativismo previamente comprometido com uma ideologia particular (Moretzsohn, 2013; Gabeira, 2013; Escorel, 2013).
Comecemos apontando o óbvio, que o fato de as transmissões de protestos por ninjas carecerem de cortes não significa que não estejam sujeitas à edição. A cobertura de manifestações por midiativistas é um processo dialógico em que a narrativa vai sendo construída ao longo do evento também em função das interações com o público, que, conectado nas redes sociais, recebe informações em tempo real e as compartilham, emitindo alertas de repressão policial num determinado local, avisando do posicionamento de outros ninjas, fazendo pedidos de checagem de informações etc. Registro e edição misturam-se, em ato, num trabalho espontâneo e não coordenado de interação coletiva. Mas a despeito desta edição coletiva, restaria ainda o problema da construção de sentido, pois que o registro visual ininterrupto, tenha as características que tiver, não bastaria por si só à compreensão adequada dos eventos retratados. O erro aqui é análogo ao de olhar somente para a capa de um jornal, como se tudo o que houvesse para ser dito sobre o assunto de que ela trata estivesse ali, contido nas manchetes. Analisar, por exemplo, a Mídia Ninja observando apenas as transmissão dos protestos, abstraindo sua filiação ao Fora do Eixo, sua atuação nas redes sociais e a estética de suas intervenções, é perder de vista o principal – seu lugar de fala. O sentido, que os críticos insistem em dizer ausente, está na verdade a todo momento sendo construído no discurso dos midiativistas, discurso este que reflete um estar no mundo marcadamente contra-hegemônico. Se tudo o que ninjas oferecessem fosse apenas um amontoado caótico de imagens que não lograsse estabelecer um quadro compreensível da realidade, como poderiam os manifestantes que permaneceram nas ruas depois de Junho terem se identificado com ela? E não é curioso que esta crítica seja exatamente o reverso daquela tradicionalmente dispensada à grande imprensa, sobre como o hábito de picotar os fatos obstaculizaria sua compreensão dentro de uma ordem mais ampla de eventos, impossibilitando o entendimento de seu sentido (Chauí, 2006)? Parece não haver meio-termo: a mídia corporativa retalha a realidade em excesso, ninjas se recusam a editá-la. O que ambas as críticas desconsideram é a estrutura narrativa que subjaz à operação de noticiar os fatos, seja nas páginas dos jornais diários, seja nas transmissões ao vivo de protestos pela internet. Pode não ser muito aparente, mas há sempre uma história sendo contada.
A avaliação da possibilidade descortinada pelo trabalho de midiativistas pouco tem a ver com correção factual, embora ela importe; não se trata de dizer que a narrativa ninja foi superior a da grande imprensa por haver apresentado os “fatos” do modo como “realmente” teriam ocorrido. Debater se o que ninjas fazem é ou não jornalismo já implica em subscrever a noção de jornalismo que importa rejeitar, porque calcada no mito da imparcialidade. A questão não é o grau de objetividade da descrição, mas sim a que desígnios serve, os possíveis que deixa entrever, os horizontes que descortina. Aí o critério de validação: a novidade transmitida via twitcam desnaturalizou o discurso da grande mídia, revelando seu caráter de narrativa ficcional. Quebrou-lhe o monopólio da produção da Verdade – lembremos, para ficarmos em apenas um exemplo, do caso do rapaz que, injustamente preso e acusado de haver arremessado um “coquetel molotv”, foi solto depois que imagens de midiativistas revelaram sua inocência – , produzindo blasfêmia. Fez isto não a partir de um lugar de fala centralizado, mas desde uma miríade de perspectivas que, conformando uma polifonia cuja autoridade não pode ser inteiramente reivindicada por ninguém, ampliou o escopo de vozes e contribuiu para redefinir as condições do diálogo – o que é, em si mesmo, um ato político.
Isto sugere que o principal feito dos Ninjas não esteve no registro do factual – embora importe, e muito, dado que o sentido de uma história muda de acordo com o ponto de onde começamos a contá-la (Soares, 2011) –, mas em haver ajudado a construir um sujeito-político-manifestante durante o processo de representá-lo. “O fato de que o evento seja indecidível faz com que apareça um sujeito do evento. Tal sujeito é constituído por um enunciado em forma de aposta. Enunciado que é o seguinte: ‘Isso teve lugar, não o posso calcular nem mostrar, mas lhe serei fiel’” (Badiou, 2002, p.45). Uma aposta, pois – não é precisamente esta disponibilidade, esta abertura aos possíveis a que um evento dá ensejo, uma condição necessária à tarefa de pensar as Jornadas de Junho em chave positiva? Do ponto de vista do poder, o que sempre esteve em jogo desde a primeira manifestação do MPL foi a necessidade de abortar a aparição pública de um sujeito cujas demandas exigem a introdução de uma novidade que alteraria a contagem do todo (Ranciére, 1996), e a violência estereotipada foi o operador conceitual deste fechamento. Assim, ao contar uma história distinta da veiculada na grande mídia, as transmissões ninja não apenas tornaram evidente, por contraste, tudo aquilo que aquela teve que excluir para construir uma ficção que contasse uma grande mentira dizendo apenas verdades, mas também ajudaram a criar um senso de pertencimento a um “nós” cuja verdade ainda estava por ser escrita. Ao fazê-lo, forneceu uma bela ilustração para o argumento foucaultiano de que a melhor forma de confrontar o poder é tornar visíveis os mecanismos através dos quais ele se exerce.
Contudo, afirmar que o critério da objetividade importa menos do que a inspiração e os efeitos da narrativa é abrir o flanco para a acusação de relativismo, e não foram poucas as vozes na imprensa que se levantaram neste sentido. O medo é o do “vale-tudo” na representação: se a mídia corporativa distorce e mente, então os midiativistas estariam autorizados a fazer exatamente o mesmo, só que em sentido contrário. O impasse é antigo conhecido. Clifford Geertz (1989), por exemplo, tinha algo semelhante em mente quando afirmava que a impossibilidade de um ambiente absolutamente asséptico não nos autorizaria a realizar cirurgias no esgoto. A analogia é até certo ponto válida, mas coloca uma armadilha à reflexão sobre o assunto, uma vez que não se trata de rejeitar a verdade como ideal regulativo, mas de ampliar o horizonte normativo de toda atividade de descrição/representação de modo a caber também outras preocupações de cunho ético e político, algumas das quais advindas do próprio compromisso de “buscar a verdade”.
Estaríamos condenados a uma guerra de versões, tanto mais suja quanto a disposição dos atores de torcer os eventos de modo a encaixá-los numa visão de mundo previamente dada? Longe disso: dizer que o critério de validação de uma narrativa não está em sua adequação aos fatos, mas em sua capacidade de nos fazer enxergá-los por uma perspectiva mais alargada, que ampliaria nossos horizontes de compreensão, não é descer a ladeira escorregadia do relativismo – a própria identificação de um critério substantivo já o afasta, pois que podemos decidir pela superioridade de uma narrativa sobre outra conflitante. A questão da validade do discurso jornalístico poderia então ser recolocada de modo a nos levar pensar sobre o quão instrutiva é a história que conta, o quanto nos permitiria compreender sobre nós mesmos, e se abriria uma fértil perspectiva acerca dos eventos que descreve. Não se pode pedir muito mais a uma narrativa. E aqui também a mensuração de méritos e falhas se dá por comparação. “Se toda estória plenamente realizada (...) é um tipo de alegoria, aponta para uma moral ou dota os eventos – sejam reais ou imaginários – de uma significância que eles não possuem enquanto mera sequência”, diz Hayden White, “então parece possível concluir que toda narrativa histórica tem como propósito latente ou manifesto o desejo de moralizar os eventos de que trata” (White, s/d/p, p.18). A narrativa ninja das Jornadas de Junho ajudou a colocar no mundo uma novidade política que, tenha os defeitos que tiver, ao menos desejou desatar o nó do imobilismo, amplificando um grito por mais participação democrática e pelo direito à cidade, quebrando o monopólio da produção da verdade, vigiando a loucura dos poderosos, expondo o longo caminho que ainda precisamos percorrer até que possamos desfrutar, na prática, da liberdade de manifestação. A narrativa da mídia corporativa, por outro lado, preocupou-se em nos fazer saber que a ordem precisava ser defendida a qualquer custo, inclusive o da normalização da exceção, de delinquentes cuja violência constituiria a mais grave ameaça à democracia brasileira.

Palavras-chave: midiativismo, protestos, discurso, mídia, redes sociais.

Referências Bibliográficas:
Badiou, A. (2002). Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Bakhtin, M. (Volochinov, V.M.) (1979). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora HUCITEC.
Chauí, M. (2006). Simulacro e poder. Uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
Escorel, E. (2013). Jornalismo e ação – observadores participantes. Revista Piauí. Recuperado em 21 de dezembro de 2013 de http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/jornalismo-e-acao-observadores-participantes
Geertz, C. (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora LTC.
Gabeira, F. (2013). Mídia Ninja e o futuro desfocado. O Estado de São Paulo. Recuperado em 03 de setembro de 2013 de http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,midia-ninja-e-o-futuro-desfocado,1064592,0.htm
Moretzsohn, S. D. (2013). A militância e as responsabilidades do jornalismo. Observatório da Imprensa. Recuperado em 25 de julho de 2013 de http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed756_a_militancia_e_as_responsabilidades_do_jornalismo
Ranciére, J. (1996). O Desentendimento. Política e Filosofia. São Paulo: Editora 34.
Soares, L. E. (2011). Justiça. Pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
White, H. (s/d/p.) O valor da narrativa na representação da realidade. Caderno de Letras, 3, 05-33.